Ao chegar do outro lado, é difícil conter a impressão de um discreto odor maligno na rua do vilarejo, que parece resultar do mofo e da decadência de séculos. É sempre um alívio sair desse lugar e seguir estrada afora, contornando os sopés das colinas e atravessando o terreno plano mais além até retornar à estrada de Aylesbury. Depois, às vezes o viajante descobre que passou por Dunwich.
Os forasteiros visitam Dunwich com a menor frequência possível, e desde uma certa estação de horror toda a sinalização que apontava para o vilarejo foi retirada. O cenário, considerado segundo os ditames do cânone estético vulgar, é mais bonito do que o normal; mesmo assim, não há influxo de artistas ou turistas de verão. Dois séculos atrás, quando boatos sobre o sangue de bruxas, rituais de adoração a Satanás e estranhas presenças na floresta eram levados a sério, em geral se ofereciam motivos para evitar o local. Na época sensata em que vivemos — desde que o horror de Dunwich em 1928 foi silenciado por aqueles que tinham o bem-estar do vilarejo e do mundo no coração — as pessoas evitam-no sem saber ao certo por quê. Talvez o motivo — embora não possa causar efeito em forasteiros desinformados — seja que os nativos agora se encontram em um estado repulsivo de decadência, uma vez que seguiram pelo caminho do retrocesso comum em vários recantos da Nova Inglaterra. Acabaram formando uma raça própria, com os estigmas bem-definidos da degeneração mental e física provocada por casamentos consanguíneos. A inteligência média da população é pavorosamente baixa, e os anais da história cheiram a vícios em excesso e ao abafamento de assassinatos, incestos e atos de violência e perversidade quase inefáveis. A antiga aristocracia, representada pelas duas ou três famílias blasonadas que chegaram de Salém em 1692, manteve-se um pouco acima do nível geral de decadência, embora muitas linhagens tenham afundado a tal ponto no meio do populacho sórdido que certos nomes permanecem apenas como uma chave para revelar a origem que desgraçam. Alguns dos Whateley e dos Bishop ainda mandam os filhos mais velhos para Harvard e para a Universidade do Miskatonic, embora esses filhos poucas vezes retornem às mansardas emboloradas sob as quais nasceram como tantos outros ancestrais.
Ninguém, nem mesmo as pessoas que conhecem os fatos pertinentes ao recente horror, sabem dizer ao certo qual é o problema com Dunwich, embora antigas lendas versem sobre rituais profanos e conclaves de índios acompanhados pela invocação de sombras proscritas nas grandes colinas abobadadas e por desvairadas preces orgiásticas respondidas por estalos e rumores vindos da terra. Em 1747 o reverendo Abijah Hoadley, recém-chegado à Igreja Congregacional em Dunwich Village, deu um sermão memorável sobre a proximidade de Satã e de uma hoste de diabretes, no qual disse:
“Devemos admitir que essas Blasphêmias de hum Séquito de Demônios infernaes são Assumptos de Conhecimento demasiado comum para que sejão negadas; tendo as vozes abafadas de Azazel e Buzrael, de Belzebu e Belial sido ouvidas nos Subterrâneos por mais de uma Vintena de Testemunhas vivas. Eu mesmo, pouco mais de duas semanas atrás, flagrei o inconfundível Discurso dos Poderes do Mal na Collina atrás da minha Casa; o qual se fez acompanhar de Pancadas e Rumores, Gemidos, Arranhões e Sibilos, taes como não existem Cousas nessa Terra capazes de provocar, e que decerto vieram das Grutas que somente a Magia negra consegue descobrir, e somente o Demônio destranca.”
O sr. Hoadley desapareceu logo depois de dar esse sermão; mas o texto, impresso em Springfield, chegou até nós. Barulhos nas colinas ainda são relatados ano após ano, e permanecem como um enigma para os geólogos e fisiógrafos.
Outras tradições fazem menção a odores fétidos próximo aos pilares de pedra que coroam as colinas e a presenças aéreas que podem ser ouvidas a certas horas em determinados pontos no fundo dos enormes vales; enquanto ainda outras tentam explicar o Canteiro do Diabo — uma encosta estéril e maldita onde nenhuma árvore, arbusto ou grama cresce. Além do mais, os nativos têm um medo mortal dos numerosos bacuraus que erguem a voz nas noites quentes. Alguns juram que os pássaros são psicopompos à espera da alma dos moribundos, e que emitem os gritos horripilantes em uníssono com os estertores dos que agonizam. Se capturam a alma ao sair do corpo, no mesmo instante alçam voo, pipilando risadas demoníacas; mas, se fracassam, aos poucos sucumbem a um silêncio decepcionado.
Essas histórias, é claro, parecem obsoletas e ridículas porque remontam a épocas demasiado antigas. A bem dizer, Dunwich é um lugar ridiculamente antigo — muito mais antigo do que qualquer outra comunidade em um raio de cinquenta quilômetros. Ao sul do vilarejo ainda se podem ver as paredes do porão e a chaminé da antiga casa dos Bishop, construída antes de 1700, enquanto as ruínas do moinho na queda-d’água, construído em 1806, o espécime arquitetônico mais moderno que se pode encontrar. A indústria não prosperou por aqui, e o impulso industrial do século xix mostrou-se passageiro. Mais velhos do que todo o restante são os enormes círculos de pedra rústica no alto das colinas, mas estes em geral são atribuídos aos índios, e não aos colonos. Depósitos de crânios e ossadas descobertos nesses círculos e ao redor da grande rocha retangular na Sentinel Hill reforçam a crença popular de que esses lugares foram outrora cemitérios dos pocumtuck, ainda que muitos etnólogos, rejeitando a improbabilidade absurda dessa teoria, continuem associando os restos mortais a pessoas de origem caucasiana.
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Foi no vilarejo de Dunwich, em uma grande casa rural parcialmente desabitada e construída junto de uma encosta a seis quilômetros do vilarejo e a dois quilômetros e meio de qualquer outra residência, que Wilbur Whateley nasceu às cinco horas da manhã de domingo, dois de fevereiro de 1913. A data era lembrada porque era Candelária, uma celebração que as pessoas de Dunwich curiosamente chamam por outro nome; e porque os rumores haviam soado nas colinas e os cachorros tinham latido sem parar no campo durante toda a noite anterior. Menos digno de nota era o fato de que a mãe era uma das Whateley decadentes, uma mulher de 35 anos, albina, com leves deformações e desprovida de qualquer encanto que vivia com o pai idoso e meio ensandecido, a respeito de quem as mais terríveis histórias de bruxaria haviam sido sussurradas na época da juventude. Lavinia Whateley não tinha nenhum esposo conhecido, mas como era costume na região não fez nenhuma tentativa de abandonar a criança; quanto à linhagem paterna, as pessoas do campo podiam especular — e de fato especularam — à vontade. Muito pelo contrário: parecia nutrir um estranho orgulho em relação ao menino de tez escura e com feições de bode que contrastava com o albinismo enfermiço e os olhos rosados da mãe e balbuciava estranhas profecias sobre os raros poderes e o espantoso futuro do menino.
Lavinia tinha uma certa predisposição a balbuciar essas coisas, pois era uma criatura solitária dada a andar em meio a tempestades elétricas nas colinas e a ler os grandes livros malcheirosos que o pai herdara após dois séculos da família Whateley e que se deterioravam muito depressa por conta da idade e das traças. Nunca tinha frequentado a escola, mas conhecia inúmeros fragmentos desconexos de sabedoria antiga que o Velho Whateley lhe havia ensinado. A propriedade remota sempre fora temida por causa do suposto envolvimento do Velho Whateley com magia negra, e a morte inexplicável e violenta da sra. Whateley quando Lavinia tinha doze anos não contribuiu em nada para a popularidade do lugar. Isolada em meio a estranhas influências, Lavinia entregava-se a devaneios elaborados e grandiosos e a ocupações um tanto singulares; o lazer não era muito prejudicado pelos afazeres domésticos em uma casa onde todos os critérios de ordem e de limpeza haviam desaparecido há muito tempo.
Houve um grito horrendo que ecoou mais alto que os rumores das colinas e os latidos dos cachorros na noite em que Wilbur veio ao mundo, mas nenhum médico e nenhuma parteira assistiu o nascimento. Os vizinhos receberam a primeira notícia sobre o garoto uma semana mais tarde, quando o Velho Whateley conduziu o trenó pela neve até Dunwich Village e fez um discurso incoerente para o grupo de desocupados no armazém de secos e molhados de Osborn.
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