Ninguém entendeu por que os autores haviam chamado tanta atenção para o fato de que o Velho Whateley sempre pagava pelo gado com moedas de ouro antigas ao extremo. Os Whateley receberam os visitantes com evidente desgosto, mas não se atreveram a atrair mais publicidade ainda se recusando a falar ou resistindo com violência.
* * *
Por uma década os anais da famílias Whateley desaparecem em meio à vida cotidiana de uma comunidade mórbida habituada aos próprios costumes estranhos e endurecida em relação às orgias na Noite de Walpurgis e no Dia das Bruxas. Duas vezes por ano fogueiras eram acesas no alto da Sentinel Hill, e por volta dessas épocas os rumores da montanha retornavam com violência cada vez maior; e em todas as estações havia uma movimentação estranha e aziaga na casa solitária. Com o passar do tempo os visitantes começaram a relatar sons ouvidos no andar superior mesmo quando toda a família estava no térreo e a fazer questionamentos acerca da rapidez ou da lentidão com que as vacas e os novilhos eram oferecidos em sacrifício. Cogitou-se fazer uma queixa na Sociedade Protetora dos Animais; mas a ideia não foi adiante, uma vez que os habitantes de Dunwich em geral não têm interesse em chamar a atenção do mundo para si.
Por volta de 1923, quando Wilbur era um garoto de dez anos com uma voz, uma estatura e uma barba que davam a mais perfeita impressão de maturidade, houve um segundo cerco de carpintaria na antiga casa. Tudo aconteceu no andar superior, que seguia trancado, e a partir dos fragmentos de lenha descartados as pessoas concluíram que o jovem e o avô tinham derrubado todas as partições internas e arrancado até mesmo o piso do sótão, deixando um único vão livre entre o térreo e as duas águas do telhado. Também haviam derrubado a grande chaminé central e equipado o velho fogão enferrujado com uma frágil chaminé externa de latão.
Na primavera após esses acontecimentos o Velho Whateley percebeu um aumento no número de bacuraus que vinham de Cold Spring Glen cantar sob a janela do quarto à noite. Parecia atribuir um significado profundo a essa circunstância e disse aos desocupados no armazém de secos e molhados de Osborn que sua hora estava chegando.
“Agora eles assovio em sintonia co’a mi’a respiração”, disse, “e eu acho que ’stão se preparano pra pegá a minh’alma. Eles sabe que ela ’stá saino pra fora e não têm a menor intenção de dexá ela escapá. Vocês vão sabê se eles me pegaro ou não depois que eu me for. Se me pegare, vão ficá cantano e rino até o dia raiá. Se não, vão se aquetá um poco. Acho que eles e as alma que andam caçano por aí deve de tê uns belo duns entrevero de vez em quano.”
Na Noite de Lammas de 1924, o dr. Houghton, de Aylesbury, foi chamado às pressas por Wilbur Whateley, que tinha vergastado o último cavalo remanescente através escuridão e telefonado do armazém de Osborn no vilarejo. O médico encontrou o Velho Whateley em estado grave, com palpitações e uma respiração estertorante que anunciavam a proximidade do fim. A filha albina disforme e o estranho neto barbado permaneceram ao lado da cabeceira, enquanto inquietantes sugestões de um escorrer ou de um chapinhar como as marolas de uma praia plana vinham do abismo logo acima. O médico, no entanto, manifestou singular preocupação com o alarido dos pássaros noturnos lá fora — uma legião aparentemente sem fim de bacuraus que cantavam mensagens infinitas em repetições diabolicamente sincronizadas com os arquejos estertorantes do velho moribundo. Era uma cena espantosa e sobrenatural — parecida, pensou o dr. Houghton, com toda a região que a contragosto havia adentrado para atender à ocorrência urgente.
Por volta da uma hora o Velho Whateley recobrou a consciência e interrompeu os estertores para tossir algumas palavras ao neto.
“Mais espaço, Willy, mais espaço em breve. Você ’stá cresceno — mas aquilo cresce dipressa. Logo vai ’star pronto pra servi você. Abra o caminho para Yog-Sothoth com o longo cântico que ’stá na página 751 da edição completa, e depois toque fogo na prisão co’um fósforo. Nenhum fogo da terra pode queimá aquilo.”
Sem dúvida o velho estava louco. Depois de um intervalo em que a revoada de bacuraus ajustou os gritos ao novo ritmo enquanto certos indícios dos estranhos barulhos nas colinas se ouviam ao longe, acrescentou mais uma ou duas frases.
“Dê de cumê pr’ele, Willy, e atente pra quantidade; mas não dexe que cresça rápido dimais pro lugar, porque se ele arrombá o escondirijo ou saí pra rua antes de você abri caminho pra Yog-Sothoth, não vai resolvê nada. Só as criatura do além pode fazê aquilo se multiplicá e dá certo… Só as criatura do além, os ancião que quere voltá…”
Mas logo a fala deu lugar a novos arquejos, e Lavinia gritou ao perceber que os bacuraus acompanharam a mudança. A situação continuou assim por mais uma hora, quando veio o estertor final. O dr. Houghton fechou as pálpebras enrugadas por sobre os olhos cinzentos e vidrados enquanto o tumulto dos pássaros aos poucos dissipou-se em silêncio. Lavinia chorou, mas Wilbur apenas conteve uma risada quando um leve rumor fez-se ouvir mais uma vez nas colinas.
“Não pegaro ele”, balbuciou com o vozeirão grave.
Por essa época Wilbur era um especialista de tremenda erudição no campo a que se dedicava, e graças às correspondências que trocava era conhecido por vários bibliotecários em lugares distantes onde os livros raros e proscritos de outrora se encontram guardados. Era cada vez mais odiado e temido nos arredores de Dunwich por conta de certos desaparecimentos de crianças atribuídos a si de maneira vaga; porém sempre foi capaz de silenciar as investigações valendo-se do medo ou da reserva de ouro antigo que, como na época dos avós, continuava sendo enviada com regularidade e em quantidades cada vez maiores para a aquisição de cabeças de gado. Wilbur tinha um aspecto incrivelmente maduro nesse ponto, e a altura, tendo alcançado o limite máximo da idade adulta, dava a impressão de que diminuiria a partir de então. Em 1925, quando um correspondente erudito da Universidade do Miskatonic visitou-o e foi embora pálido e intrigado, media exatos dois metros e cinco centímetros.
Ao longo dos anos, Wilbur vinha tratando a mãe deformada e albina com um desprezo cada vez mais intenso, e por fim a proibiu de acompanhá-lo até as colinas na Noite de Walpurgis e no Dia das Bruxas; e no ano de 1926 a pobre criatura admitiu para Mamie Bishop que sentia medo do filho.
“Ele tem mais mistérios do que eu saberia explicá, Mamie”, disse. “E nesses últimos tempo têm acontecido cousas que nem eu sei.
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