Acusei-a; parecia, por minhas palavras, que ela deveria sentir-se responsável pela má qualidade da comida. Esse pequeno atraso no regime que eu resolvera adotar adquiria a mais grave importância; eu esquecia os dias anteriores; esse jantar fracassado punha tudo a perder. Fiquei irredutível. Marceline teve de ir à cidade buscar uma conserva, um patê qualquer. Voltou em seguida com uma tigelinha que devorei quase toda, como para provar que, de nós dois, era eu o que tinha mais necessidade de comer. Na mesma noite decidimos o seguinte: as refeições deveriam ser muito melhores: mais numerosas também, uma em cada três horas; a primeira seria às seis e meia. Uma abundante provisão de conservas de toda espécie supriria os modestos pratos do hotel …
Não pude dormir aquela noite, de tal modo o pressentimento, de minhas novas virtudes me perturbava. Creio que tive um pouco de febre; tinha a meu lado uma garrafa de água mineral; bebi um copo, dois copos; da terceira vez, esvaziei a garrafa, bebendo pelo gargalo. Estudava minha vontade como se estuda uma lição; tomava conhecimento de minha hostilidade e a projetava contra todas as coisas; devia lutar contra tudo: minha salvação dependia só de mim. Enfim, vi a noite empalidecer; o dia apareceu. Tinha sido a minha vigília de armas. O dia seguinte era domingo. Até então, confesso que não me preocupava com as crenças de Marceline; por indiferença ou pudor, parecia-me que nada tinha a ver com aquilo; além disso, não lhe dava importância. Aquele dia, Marceline foi à missa. disse-me, ao voltar, que tinha rezado por mim. Olhei-a fixamente e lhe falei com a maior ternura: — Não deves rezar por mim, Marceline. — Por quê? — perguntou um pouco inquieta. — Eu não gosto de proteções. — Repeles a ajuda de Deus? — Depois, ele teria direito à minha gratidão. Isso cria obrigações; não quero assumi-las. Tínhamos o ar de quem graceja, mas não nos enganávamos, de modo algum, sobre a importância de nossas palavras. — Não poderás curar-te sozinho, pobre amigo — suspirou. — Então, tanto pior … Depois, notando sua tristeza, acrescentei menos brutalmente: — Tu me ajudarás.
III
Vou falar longamente do meu corpo. Falarei tanto, que parecerá a vocês que esqueço a parte do espírito. Minha negligência nesta narrativa é voluntária; era real quando eu a estava vivendo. Não tinha força bastante para manter uma dupla vida; do espírito e do resto, pensava, cuidarei mais tarde, quando estiver melhor.
Estava longe de sentir-me bem. Por qualquer coisa transpirava; por qualquer coisa me resfriava; tinha, como dizia Rousseau, “o hálito curto”, às vezes, um pouco de febre; outras vezes, desde pela manhã, um sentimento de horrível lassidão, e ficava, então, prostrado sobre uma poltrona, indiferente a tudo, egoísta, preocupado unicamente em respirar bem. Respirava penosamente, com método, com cuidado; minhas expirações se faziam em duas arrancadas que a minha vontade supertensa não podia conter; muito tempo depois, não conseguia evitá-las senão à custa de muita atenção.
Mas o que mais me fez sofrer foi minha mórbida sensibilidade a toda mudança de temperatura. Penso, quando hoje medito sobre aquilo, que uma perturbação nervosa de ordem geral se juntava à doença; não poderia explicar de outra maneira uma série de fenômenos, irredutíveis, creio eu, ao simples estado tuberculoso, como me parecia então. Sentia sempre calor ou frio excessivos; cobria-me logo com um exagero ridículo, passava do calafrio ao suor, descobria-me um pouco, e tremia quando deixava de transpirar.
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