Me devolvam o filhote. O que o Povo Livre quer com esse filhote de homem?
Akela também nunca levantava as orelhas. Tudo o que dizia era:
— Olhem bem, lobos! O que o Povo Livre tem a ver com outras ordens, exceto as do próprio Povo Livre? Olhem bem!
Houve uma sinfonia de rosnados contidos e um jovem lobo de uns quatro anos replicou a pergunta de Shere Khan para Akela:
— O que o Povo Livre tem que ver com um filhote de homem?
Ora, a Lei da Selva estabelece que, se surgir qualquer disputa sobre um filhote ser aceito na matilha, ela deve ser debatida por pelo menos dois membros da alcateia que não sejam pai ou mãe.
— Quem fala pelo filhote? — perguntou Akela. — Entre o Povo Livre, quem fala?
Não houve resposta, e Mãe Loba se preparou para o que imaginava ser sua última luta caso as coisas acabassem em briga.
Então, a única outra criatura permitida no Conselho da Alcateia — Baloo, o urso castanho e preguiçoso, professor que ensinava a Lei da Selva aos filhotes de lobos —, o velho Baloo, que vem e vai para onde quiser porque come apenas castanhas, raízes e mel — levantou-se sobre as patas traseiras e grunhiu:
— O filhote de homem, o filhote de homem? — disse. — Eu falo pelo filhote de homem. Ele não traz perigo. Não sou bom com palavras, mas falo a verdade. Deixem o pequeno ficar na matilha com os outros. Eu o ensinarei.
— Ainda precisamos de mais um — disse Akela. — Baloo falou e ele é o professor das crianças. Quem mais fala além de Baloo?
Uma sombra negra desceu no centro do círculo. Era Bagheera, negro feito nanquim e com suas pintas de pantera visíveis apenas quando a luz batia de um jeito especial em seu pelo, que parecia seda molhada. Todos o conheciam e ninguém se metia com ele porque era tão astuto quanto Tabaqui, forte feito um búfalo selvagem e destemido como um elefante machucado. Sua voz, porém, era suave tal qual mel gotejando da árvore e sua pele era mais macia do que o anoitecer.
— Akela e todos do Povo Livre — ronronou —, não faço parte da sua reunião, mas a Lei da Selva diz que se há uma dúvida que não seja questão de morte em relação a um novo filhote, a vida desse filhote pode ser comprada por certo preço. E a lei não diz quem deveria pagar tal preço. Estou certo?
— Isso! Isso! — disseram os lobos jovens, sempre famintos. — Ouçam Bagheera. O filhote pode ser comprado por certo preço. É a lei.
— Sabendo que estou me intrometendo, peço a sua permissão.
— Pois diga — gritaram vinte vozes.
— Matar um filhote nu é vergonhoso. Além disso, ele poderá ser um adversário mais à altura quando crescer. Baloo já se pronunciou em seu favor. Agora, além das palavras de Baloo, podem somar um búfalo, dos gordos, recém-caçado, que deixei a menos de um quilômetro daqui. Isso caso vocês aceitem o filhote de homem conforme a lei. Aceitam?
Houve um clamor crescente de vozes dizendo:
— Que diferença faz? Ele vai morrer nas monções de inverno mesmo. Vai secar no sol a pino. Que perigo representa para nós uma rã pelada? Deixem-no acompanhar a matilha. Onde está o búfalo, Bagheera? Nós aceitamos.
E então o uivo gutural de Akela continuou gritando:
— Olhem bem! Olhem bem!
Mowgli ainda estava profundamente interessado nos pedregulhos e não percebeu os lobos se aproximarem, um a um, para olhá-lo. Depois, todos eles desceram a encosta na direção do búfalo morto e somente Akela, Bagheera, Baloo e os pais de Mowgli ficaram. Shere Khan ainda rugia noite afora, furioso por Mowgli não ter sido entregue a ele.
— Ora, ele que ruja o quanto quiser — disse Bagheera por entre os bigodes —, porque ainda virá o tempo em que essa coisinha pequena o fará rugir em outra nota, se é que conheço um pouco sobre os homens.
— Está tudo bem resolvido — disse Akela. — Os homens e seus filhotes são muito sábios.
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