Assim são aqueles cachos de cabelo dourado, encaracolado, enroladinho, que dão cambalhotas levianas ao vento em cima de uma suposta formosura, que em geral sabe-se ser herança de uma segunda cabeça: o crânio que os criou, agora caveira em cova. O ornamento não é mais que a praia traiçoeira descortinando um mar devorador; é o lindo lenço que cobre uma beleza indiana.[44] Em resumo, esta é a aparente verdade que estes nossos dias ardilosos apresentam para ludibriar os mais sábios. Portanto, vós, ouro vistoso, alimento do rei Midas, não quero saber de vós; nem de vós, pálido e vil metal que se molda conforme a ocasião, que passa de mão em mão. Mas vós, vós, pobre chumbo que aqui está como ameaça e nada promete, vossa característica incolor mexe comigo mais que a eloquência. Minha escolha é esta. Que seja alegria a consequência.

Pórcia [à parte] – Como se dissipam no ar todos os outros martírios: os pensamentos duvidosos, e o desespero que acolhi precipitadamente, e o medo estremecedor, e a inveja com seus olhos verdes! Ah, amor, modera-te, suaviza o teu êxtase, mostra comedimento quando fizeres chover tua alegria, escasseia este excesso! Sinto até a medula a tua bênção; menos, menos, pois tenho medo de engasgar.

Bassânio abre o porta-joias de chumbo.

Bassânio – E o que descubro? Uma cópia da formosa Pórcia! Que semideus chegou tão perto da criação? Esses olhos se movimentam? Ou será que, ao fixar os meus, eles parecem estar se movimentando? Aqui temos lábios separados pelo mais doce hálito, como deve ser: parceiros tão doces deixando-se separar por doce barreira. Aqui, no cabelo, o pintor toma a si o papel da aranha e tece uma rede dourada para capturar os corações masculinos com mais força que as teias têm para prender moscas. Mas, e os olhos dela… como pôde o pintor concentrar-se neles? Tendo pintado um, a mim me parece que este um teria tido o poder de roubar dele os seus dois, deixando-se, na pintura, a si mesmo desacompanhado. E, no entanto, olhem a que ponto a substância dos meus elogios prejudica esta cópia, posto que não a estou valorizando devidamente; da mesma maneira, esta cópia do real não consegue mais que mancar, posto que tenta correr atrás da substância. Eis aqui o rolo de pergaminho que contém o resumo da minha sorte.

Lê.

“Tu, que escolhes não pela fachada;

Tu, que crês na tua boa sorte:

Dá tua busca já por encerrada,

Pois tua fé no verdadeiro é forte.

Se quiseres tua sorte abençoar,

E se assim ficar do teu agrado,

Vira-te pra onde tua noiva está

E vai, dá-lhe um beijo enamorado.”

Que simpático! Com licença, meu bem:

Pelo escrito, dou, mas recebo também.

Como alguém que um belo prêmio disputou

E acha que aos olhos do público superou-se,

Ouço aplausos e gritaria geral,

Mas minha incredulidade é visceral.

Elogios estrondosos! São meus, ou não?

Eu me sinto... assim... tonto de emoção.

Se você, três vezes formosa, assinar

E confirmar, então posso acreditar.

Pórcia – Você está me vendo, Lorde Bassânio, bem aqui onde estou, bem assim como eu sou. Embora eu, por mim mesma, não quisesse ser ambiciosa em meus desejos a ponto de desejar ser melhor do que sou, assim mesmo, por você eu seria em triplo vinte vezes mais do que sou, mil vezes mais bonita, dez mil vezes mais rica, isso apenas para você me ter em alta conta, de modo que eu pudesse exceder em virtude, em beleza, em bens materiais, em amizades, sua estimativa. Mas a soma total de mim é a soma de alguma coisa; em seu valor bruto, é uma moça sem estudo, sem escola, sem vivência; nisto ela é feliz, pois não é velha demais para aprender; mais feliz ainda porque não nasceu tão obtusa que não possa aprender; e felicíssima, acima de tudo, porque o seu espírito gentil compromete-se com o seu, Lorde Bassânio, para que você o guie como esposo, governante, rei. O meu próprio eu, e o que é meu, converte-se agora para você e para o que é seu. Ainda agora era eu o dono desta linda mansão, o amo de meus serviçais, rainha de mim mesma; e agora mesmo, neste momento, esta casa, essa criadagem, e esta mesma que sou eu, são seus, meu senhor. Tudo eu lhe dou juntamente com este anel; quando você dele se separar, ou perder, ou der para alguém, que isso seja o presságio da ruína do seu amor por mim, e terei nas mãos oportunidade de denunciá-lo, meu senhor.

Bassânio – Madame, você agora me despojou de todas as palavras. Apenas o meu sangue fala com você em minhas veias, e é tamanha a confusão de minhas faculdades mentais… como depois do discurso bem proferido de um príncipe amado de seu povo… a confusão que emerge no burburinho da multidão satisfeita, onde cada palavra vai se aglutinando às outras e resulta um zumbido desordenado de palavra nenhuma, mas cheio de uma alegria que se expressa e que não se expressa. Mas, quando este anel sair deste meu dedo, é porque a vida terá se esvaído daqui. Então, tenha a coragem de proclamar: “Bassânio está morto”.

Nerissa – Meu lorde e minha lady, este é o momento em que nós, que estávamos de espectadores, esperando vossos desejos serem atendidos, podemos finalmente gritar: “Muitas felicidades”. Muitas felicidades, meu lorde e minha lady!

Graciano – Meu Lorde Bassânio e minha gentil dama, desejo aos dois toda a felicidade que vocês podem desejar, pois com certeza não vão desejar nada contrário à minha felicidade. E quando suas senhorias decidirem tornar solene o contrato de seus afetos, eu lhes peço permissão para casar também, no mesmo dia.

Bassânio – Permissão dada, do fundo do meu coração, desde que arranjes uma noiva para ti.

Graciano – Nisso eu agradeço a sua senhoria, pois foi quem me arranjou uma. Meus olhos, milorde, podem enxergar com a mesma rapidez que os seus; você enxergou essa lady, e eu observei sua dama de companhia. Você se apaixonou, e eu me apaixonei, pois perder tempo, assim como para você, também para mim não é interessante. A sua sorte dependia daqueles porta-joias, e a minha sorte, como veio a acontecer, também. Depois de muito suar fazendo a corte aqui, e de fazer juras de amor até deixar seco o céu da boca, finalmente… se ela não mente… arranquei uma promessa aqui desta linda donzela: seu amor seria meu, desde que a sua sorte, senhor, lhe garantisse a sua lady.

Pórcia – É verdade, Nerissa?

Nerissa – É, sim, madame, desde que seja do seu agrado.

Bassânio – E você, Graciano, está agindo de boa-fé?

Graciano – Por minha fé, milorde, sim.

Bassânio – Será uma honra para nossa festa de casamento contar com o casamento de vocês.

Graciano – Vamos apostar com eles mil ducados para ver quem vai ter primeiro um filho varão.

Nerissa – Mas, como, um valor assim tão… flácido?

Graciano – Não interessa o valor; não tem como ser flácido e ainda assim ganhar a aposta. Mas, quem vem aí? Lorenzo e sua judia! E também o meu velho amigo de Veneza, Salério!

Entram Lorenzo, Jéssica e Salério, um mensageiro de Veneza.

Bassânio – Lorenzo e Salério, sejam bem-vindos… se é que minha novíssima condição aqui já me dá o direito de desejar-lhes as boas-vindas! Com sua licença, minha doce Pórcia, dou as boas-vindas aos meus fiéis amigos e compatriotas.

Pórcia – E eu também, milorde. Eles são mais que bem-vindos.

Lorenzo – Fico grato a sua senhoria. De minha parte, milorde, meu objetivo não era vir até aqui para encontrá-lo, mas, ao me encontrar com Salério por acaso, ele tanto fez que me convenceu, e não tive como negar-me, a acompanhá-lo até aqui.

Salério – É verdade, milorde. E tenho motivos para tanto.