Parece ter sido nessa época que Shakespeare aposentou-se dos palcos: seu nome não aparece nas listas de atores a partir de 1607. Voltou a viver em Stratford, onde era considerado um dos mais ilustres cidadãos. Escreveu então quatro tragicomédias, subgênero que começava a ganhar espaço: Péricles, Cimbelino, Conto de inverno e A tempestade, sendo que esta última foi encenada na corte em 1611. Shakespeare morreu em Stratford em 23 de abril de 1616. Foi enterrado na parte da igreja reservada ao clero. Escreveu ao todo 38 peças, 154 sonetos e uma variedade de outros poemas. Suas peças destacam-se pela grandeza poética da linguagem, pela profundidade filosófica e pela complexa caracterização dos personagens. É considerado unanimemente um dos mais importantes autores de todos os tempos.

“Terás mais justiça do que querias”

Mais conhecido modernamente por suas tragédias, Shakespeare na verdade foi um grande comediógrafo da Inglaterra elizabetana. E O mercador de Veneza classifica-se entre as comédias do autor.

As pesquisas sobre a criação do texto situam O mercador de Veneza como obra não anterior a 1596. O enredo da peça saiu de um conto italiano do século XIV, publicado em Milão em 1558. Neste conto, temos a história de um homem de Veneza chamado Giannetto (que tem um generoso padrinho, Ansaldo) e de uma lady de Belmonte; há também a dívida de uma libra de carne humana pesada na balança, a lady disfarçada de advogado e a questão de um anel, detalhes que igualmente aparecem em O mercador.

Christopher Marlowe, dramaturgo contemporâneo de Shakespeare, escrevera Jew of Malta (O judeu de Malta), peça de sucesso nos palcos ingleses em duas ocasiões distintas, uma delas em 1594, ano em que um português (judeu de nascimento), médico da rainha Elizabeth, foi sentenciado à morte por traição. Os estudiosos de O mercador apontam em certas falas de Shylock um eco de algumas falas do judeu de Marlowe.

Como peça de uma estética renascentista romântica, O mercador de Veneza apresenta Belmonte, um espaço de conto de fadas, onde há uma linda “princesa” (Lady Pórcia) e caixas ornamentadas que guardam segredos em forma de charada. A peça exibe ainda um outro detalhe do Romantismo típico das tragédias shakespearianas, e não das comédias: Shylock tem uma premonição que lhe chega através de um sonho. Ele sonha e pressente: “Alguma maldade está sendo preparada contra o meu repouso, pois esta noite passada sonhei com sacas de dinheiro” (2, V). Além disso, temos na trama Pórcia, uma heroína romântica que declara ao seu amado um amor romântico (que remete a outra Pórcia de Shakespeare, em Júlio César) e diz, como a esposa de César: “Detesto esses seus olhos! Porque me enfeitiçaram e me dividiram: uma metade minha é sua, e a outra metade é sua… quero dizer, minha. Mas, se é minha, é sua e, portanto, sou inteira sua” (3, II).

O tema do preconceito (no caso específico de Shylock, o antissemitismo) também pode ser visitado nas cenas em que as três caixas são escolhidas consecutivamente por três pretendentes de Pórcia, a rica herdeira, lady de Belmonte – e os versos que as caixas contêm traduzem-se numa lição de moral sobre o preconceito: “nem tudo que reluz é ouro”, ou seja, as aparências enganam; o que não promete nada (o amor) e, em vez disso, exige e ameaça (com a possibilidade de vir a perder tudo), é justamente o que entrega o prêmio pretendido (o amado).

No último ato de O mercador, temos a questão dos anéis motivando rusgas entre dois casais – retoma-se a temática do obstáculo a ser superado pelos pares românticos, o que dá a Shakespeare a chance de apresentar uma vez mais em sua dramaturgia a guerra dos sexos (tão bem textualizada em A comédia dos erros). Reafirma-se a imagem da mulher como ser ardiloso e compreensivo (quando não condescendente) frente ao homem. Depois dos altos e baixos das confusões românticas, tem-se o típico final das comédias do teatro elizabetano: os casais saem de cena para consumar o casamento (enfim, a noite de núpcias), o que vai ao encontro das expectativas do público espectador da época de Shakespeare.

Contudo, as comédias shakespearianas subvertem as expectativas do público (leitor ou espectador) – o final feliz nunca é totalmente livre de problemas, nunca traz em si todas as resoluções (de reconciliação e consequente alegria) para todas as confusões do enredo. O público espectador da Era Elizabetana, assim como os públicos leitor e espectador de hoje, espera de uma comédia um final feliz. Mesmo que em certos momentos o texto se mostre francamente trágico, o público aceita os momentos de tragédia na certeza de que, no fim, tudo ficará bem – os contratempos terão sido solucionados. A comédia romântica, classificação que abrange as comédias shakespearianas, em linhas gerais trata do amor heterossexual entre jovens que estão em perigo ou passam por dificuldades. Ao fim da peça, os desencontros terminam em reencontros, e o clima geral é de reconciliação depois de todas as confusões do enredo.

Temos em O mercador de Veneza os casais românticos de uma comédia, em número de três: Jéssica e Lorenzo (que precisam superar o obstáculo de ser ela judia e ele cristão); Pórcia e Bassânio (para o rapaz ter a moça, ele precisa decifrar uma charada imposta pelo falecido pai de Pórcia); e Nerissa e Graciano.

Há pelo menos duas confusões típicas de uma comédia renascentista: mulheres que se vestem de homens (lembrando que, na época, era proibido às mulheres atuarem no palco, o que emprestava a esse tipo de situação cênica ainda mais um viés para interpretação: o público sabia que tinha à sua frente um rapaz fazendo papel de mulher fazendo papel de um rapaz) e o aparente sumiço de anéis que trocam de dono no desenrolar da trama. Tanto um quanto outro – ambos artifícios dramatúrgicos para a instauração de confusões em cena – foram usados por Shakespeare em outras peças (a troca de anéis em Bem está o que bem acaba e mulheres travestindo-se de homens em Noite de Reis, por exemplo).

Embora textos cômicos para o teatro sejam arquitetados em cima de confusões que permeiam a trama (trocas de identidade, por exemplo), Shakespeare por vezes introduz nas comédias uma personagem imbuída de maldade (uma característica de personagem trágica), o que dilata o eixo cômico das confusões e torna menos relevante o tema dos enganos (propositais ou não).

Shylock, o judeu de Veneza, é mais do que uma dessas personagens imbuídas de maldade; Shylock é uma personagem verdadeiramente trágica dentro de uma comédia; daí uma das singularidades dramatúrgicas que fazem de O mercador de Veneza um dos textos mais importantes de Shakespeare e que se presta a ser encenado de várias maneiras – e que vem sempre recebendo novas interpretações ao longo dos séculos.

O conflito que se deflagra na peça é instaurado por um desejo de vingança contra a humanidade, contra o universo, contra as injustiças do mundo. Há este judeu em Veneza, Shylock, farto de tanto ser acusado de ser o que ele é (um judeu), farto de tanto ser ofendido em função de sua identidade – na época em que se passa a história de O mercador de Veneza, fim do século XVI, os judeus dessa cidade-Estado eram obrigados a morar em um gueto. Na Inglaterra de Shakespeare, todo judeu era persona non grata havia três séculos. Proibidos de ter propriedades, aos judeus restava ocuparem-se com o exercício da usura – prática de que os cristãos lançavam mão com assiduidade e, paradoxalmente, prática que o seu moralismo condenava, por ser taxada de pecado pelo cristianismo. Como os judeus, diferentemente dos negros, não tinham traços físicos que os diferenciassem dos cristãos, eram obrigados a cobrir a cabeça com um chapéu vermelho. Isso os punha em destaque no Rialto, o centro financeiro de Veneza, onde se reuniam os homens de negócio da época na cidade-Estado.

A irredutibilidade do judeu Shylock em seu desejo de vingança contra o mundo que o maltrata vem acompanhada de uma argumentação impecável, e um dos argumentos aponta um dedo acusador na direção dos cristãos: são escravagistas desde sempre os mesmos que naquele momento acusam Shylock de inumano.

Shylock é derrotado e condenado por um sistema surdo aos seus apelos – do mesmo modo que ele se mostrara, momentos antes, surdo aos apelos de seus arguidores, para mais adiante ser por eles ameaçado: “Terás mais justiça do que querias”.

Personagem que começa sendo mostrado como vítima de preconceito, Shylock primeiro sofre um duro golpe perpetrado pela própria filha; depois, na questão que envolve Antônio, o mercador de Veneza, confia no sistema judicial e termina por este derrotado: “perda em cima de perda...” (3, I). Antônio é personagem que também começa e termina derrotado – pela própria melancolia, que se supõe calcada em um amor impossível: “Eu sou o carneiro doente do rebanho, marcado para morrer” (4, I). E tudo isso dentro de uma peça que se classifica como comédia.

Antônio tem uma fala que define sua tristeza existencial e que também é típica de Shakespeare (por exemplo, em Sonho de uma noite de verão) – uma fala que trata da vida como um grande teatro, do mundo como um grande palco, dos homens como pobres atores: “Eu levo o mundo como o mundo é, Graciano: um palco, onde cada homem tem o seu papel, e o meu é triste” (1, I).

Já Shylock é uma personagem tão dominante na trama, tão densa em seu sofrimento e seus questionamentos do status quo, homem tão sofrido em sua viuvez (da esposa e de uma pátria-mãe), que é comum que o público em geral pense que o mercador de Veneza do título (na verdade, Antônio) é o judeu injuriado e sedento de vingança.

O mercador de Veneza também pode ser vista como uma peça sobre a compaixão como sentimento necessário ao ser humano.