Assim fala a precocemente sábia Pórcia sobre a necessidade de exercermos a misericórdia:

A misericórdia é uma virtude que não se pode fazer passar à força por uma peneira, mas pinga como a chuva mansa cai dos céus na terra. É duplamente abençoada: abençoa quem tem compaixão para dar e quem a recebe. Poderosa nos poderosos, harmoniza-se com o monarca ao trono melhor que a coroa. O cetro denota a força do poder temporal, o atributo real que inspira o respeito à majestade, fonte do temor e da reverência aos reis. Mas a misericórdia está acima de qualquer movimento do cetro. Ela tem seu trono no coração dos reis, é um atributo de Deus e um tributo a Deus, é um poder mundano que se mostra divino… quando a misericórdia vem temperar a justiça. (4, I)

Com esta tradução da peça para a língua portuguesa do Brasil, suspendo o prefácio neste ponto e deixo para os leitores de Shakespeare detectar no texto da peça quais outras questões são motivo de sofrimento para Shylock, quais outras questões são motivo de sofrimento para Antônio, onde no texto ecoam ditos populares e ensinamentos da Bíblia e que relevância têm no texto as alusões à mitologia clássica. Detectar no texto os encantos da linguagem foi tarefa minha, de tradutora.

Quando o leitor desta tradução encontrar em uma mesma fala, por exemplo, diferentes pronomes com os quais a personagem que fala dirige-se ao seu interlocutor (por exemplo, você/tu; o senhor/você), aviso desde já que esta é uma marca do texto dramatúrgico shakespeariano, e não um erro de tradução e/ou revisão. Essas flutuações nos pronomes pessoais e de tratamento em geral (mas nem sempre) devem-se a mudanças no humor ou no estado emocional de quem fala. O processo tradutório procurou não apagar essas inconsistências gramaticais aparentes.

Espero que o leitor encontre, neste português de hoje, alguma ressonância do texto shakespeariano, mesmo que rarefeita, de uma construção (que se pretendeu estética) das palavras em frases, das frases em diálogos, dos diálogos em falas devidamente cadenciadas – para que estas possam ser, na imaginação do leitor, as falas dos atores no palco.

Beatriz Viégas-Faria

Junho de 2007

Obras consultadas:

CREASER, John. Forms of confusion. In: LEGGATT, Alexander (ed.). The Cambridge Companion to Shakespearean Comedy. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. p. 81-101.

LEGGATT, Alexander (ed.). The Cambridge Companion to Shakespearean Comedy. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.

MAHOOD, M.M. The New Cambridge Shakespeare. Cambridge: The Cambridge University Press, 2003.

RADFORD, Michael (diretor e roteirista). William Shakespeare’s The Merchant of Venice. Sony Pictures. UK, 2004.

<http://www.sonypictures.com/classics/merchantofvenice/SONY-VEMI-04/TeachersGuide.pdf>

SOARES DOS SANTOS, Marlene. Rindo com o Bardo. In: William Shakespeare. EntreClássicos 2. Edição especial da Revista EntreLivros. São Paulo: Duetto, 2006.

 

 

 

 

 

 

 

O MERCADOR DE VENEZA 

PERSONAGENS

O Doge de Veneza

O Príncipe do Marrocos, pretendente de Pórcia

O Príncipe de Aragão, também pretendente de Pórcia

Bassânio, um lorde italiano, outro pretendente de Pórcia

Antônio, um mercador de Veneza

Solânio --------|     

Salarino          |     Cavalheiros venezianos,

Graciano          |     acompanhantes de Bassânio

Lorenzo --------|

Shylock, o judeu rico, pai de Jéssica

Tubal, um judeu, amigo de Shylock

Pórcia, a dama italiana, rica

Nerissa, sua dama de companhia

Jéssica, filha de Shylock

Gobbo, um velho, pai de Lancelote

Lancelote Gobbo, o Palhaço

Estéfano, um mensageiro

Carcereiro

Salério, um mensageiro de Veneza

Leonardo, um dos criados de Bassânio

Baltasar -----------|

Criado                  |     a serviço da casa de Pórcia

Mensageiro --------|

Um criado, contratado por Antônio

Serviçais

Os Magníficos Lordes de Veneza

Oficiais do Tribunal de Justiça

PRIMEIRO ATO

Ato 1, Cena I [Em Veneza]

Entram Antônio, Salarino e Solânio.

Antônio – A bem da verdade, nem sei de onde esta minha tristeza. Me incomoda saber que isso te incomoda. Mas, como foi que peguei isso, como foi que me achei assim, ou mesmo como foi que isso se apoderou de mim, e de que matéria ela é feita e onde está sua origem, ainda preciso descobrir. E tamanho idiota essa tristeza faz de mim que me fica muito difícil reconhecer-me a mim mesmo.

Salarino – Sua mente agita-se no oceano, lá onde os seus opulentos navios mercantes agitam-se com portentosas velas, como os importantes senhores da Signoria[1] e os burgueses ricos, na maré cheia; ou, se você prefere, como as principais atrações de um desfile: observando a insignificância dos outros negociantes, que se curvam em reverência à sua passagem veloz, no voo de suas asas habilmente tecidas.

Solânio – Acredite-me, sir: tivesse eu tantos bens empenhados em uma iniciativa de risco, boa parte de minhas preocupações estaria lá fora, junto com minhas esperanças. Eu estaria a toda hora arrancando capim do chão e atirando-o para o alto, que era para ver de que direção sopram os ventos; eu estaria examinando os mapas à procura de portos e píeres e ancoradouros; e cada incidente que pudesse me antecipar uma desgraça, que viesse me fazer temer por meu empreendimento de risco, ora… sem dúvida alguma, isso me poria triste.

Salarino – Só no soprar a minha sopa eu já ia ter um febrão[2] me sacudindo, de tanta agonia, ao imaginar que um forte vendaval pudesse estar soprando em alto-mar. Eu não ia conseguir ver a areia escorrendo na ampulheta sem pensar em bancos de areia, imaginando o meu Santo André,[3] carregado de preciosidades, encalhado, adernando, e depois o topo dos mastros chegando à altura do convés, preparando-se para beijar sua sepultura. Se eu fosse à igreja, só de ver a sagrada edificação de pedras, será que eu conseguiria desviar o pensamento de rochedos perigosos? A eles basta tocar o material nobre e delicado de um dos lados do meu navio para que todas as suas especiarias se derramem na corrente, para que todas as minhas sedas[4] cubram as águas e seu rugido, para que (em resumo) eu, que até aquele instante valia tanto… no mesmo instante já não valha nada. Será que eu poderia, imaginando essas coisas, pensar sobre isso e ao mesmo tempo não imaginar que, no caso de um tal azar, isso não me deixaria triste? Mas não, não me responda; eu sei que Antônio está triste de tanto pensar em sua mercadoria.

Antônio – Acreditem-me, não. Agradeço à minha boa estrela por isto: meus empreendimentos de risco não estão aplicados em um único casco de navio, tampouco vão eles para um único lugar; também não depende todo o meu patrimônio dos desígnios deste ano. Assim, não é a minha mercadoria o que me entristece.

Solânio – Ora! Então você está apaixonado.

Antônio – Nem pensar!

Solânio – Também não é paixão? Então, digamos que você está triste porque não está alegre; e daria no mesmo se você estivesse dando risada e dando cambalhota e dissesse que está alegre porque não está triste. Agora, por favor: pelas duas frontes do deus Jano,[5] a Natureza construiu sujeitos estranhíssimos à sua época.