Sempre aceitei tudo com paciência, com um dar de ombros, pois este é o emblema[22] de toda a nossa tribo: resignar-se, sofrer em silêncio. O senhor me chama de infiel, de cão[23] raivoso, e cospe na minha gabardina de judeu. E tudo porque faço uso daquilo que é meu. Pois bem, agora parece que você está precisando de minha ajuda. O que acontece? Você vem a mim e diz: “Shylock, nós queremos ter dinheiros”; é o que você diz, você que jogou o seu catarro nas minhas barbas e me chutou como quem enxota um vira-lata intruso porta afora, e você vem me pedir dinheiros. O que será que eu devo lhe responder? Eu poderia perguntar: “Um cachorro tem dinheiro? Pode um cachorro emprestar três mil ducados?”. Talvez eu devesse me curvar em profunda reverência e, no tom de voz de um escravo, com a respiração suspensa e com sussurrada humildade, eu devesse dizer:
“Mui justo senhor, o senhor cuspiu em mim na última quarta-feira, o senhor me enxotou em um tal dia e, de outra feita, me chamou de cachorro; e, em consideração a essas cortesias, vou lhe emprestar estes tantos dinheiros.”
Antônio – Estou a ponto de te chamar assim de novo, de cuspir em ti de novo, de te enxotar a pontapés também. Se queres emprestar esse dinheiro, empresta não como se fosse para amigos, pois quando é que um amigo toma de outro amigo a ninhada de seu estéril metal? Pelo contrário: empresta o teu dinheiro ao teu inimigo, àquele que, se for à bancarrota, tu podes com um sorriso no rosto cobrar dele a multa devida.
Shylock – Ora, veja só, como o senhor ficou irado! Meu desejo era ser seu amigo, e ter sua afeição, esquecer os insultos com que me manchou a mim, suprir suas necessidades de agora e não aceitar nem um tostão de juros pelos meus dinheiros, mas o senhor não quer me ouvir. Minha oferta é benevolente.
Bassânio – Deveras, isso seria benevolência.
Shylock – E meu desejo é provar essa benevolência. Venha comigo a um notário, me ponha o seu selo e a sua assinatura nessa letra promissória única e livre de condições… e, só por brincadeira, se você não me pagar o que deve no dia previsto, no local previsto, tal quantia ou quantias como descritas na promissória, que seja a multa exatamente uma libra de sua carne clara, a ser cortada e tirada de qualquer parte do seu corpo que eu nominar.
Antônio – Está bem, dou-lhe a minha palavra! Aponho o meu selo a essa promissória, e posso dizer que tem muita benevolência num judeu.
Bassânio – Você não vai assinar uma promissória dessas por mim; prefiro continuar passando necessidades sem-fim.
Antônio – Ora, não precisa ter receio, homem; eu não vou pagar a multa. Dentro de dois meses, um mês antes de expirar a promissória, minha expectativa é de estar recebendo, no retorno de meus empreendimentos, três vezes o triplo do valor dessa promissória.
Shylock – Ah, meu pai Abraão, o que não são esses cristãos, cuja própria maneira de agir, por ser maldosa, ensina-os a suspeitar do pensamento alheio! Eu lhe peço, responda-me o seguinte: se o devedor falta com sua palavra no dia do pagamento, o que ganho eu mandando executar a multa? Uma libra de carne humana, arrancada de um homem, não é coisa nem desejada nem lucrativa, como seria a carne de ovelha, ou de boi, ou de cabra. Digo que, para cair nas boas graças do Signor Antônio, ofereço amizade. Se ele quiser, que a aceite; se não, adeus e, por respeito a minha pessoa, peço que não me ofenda.
Antônio – Está bem, Shylock, eu aponho o meu selo nessa sua promissória.
Shylock – Então me encontre sem demora na casa do notário. Dê a ele as instruções para este nosso jovial contrato, que eu vou diretamente juntar numa bolsa os ducados, vou dar uma olhada na minha casa, que ficou sob a guarda nada confiável de um servo descuidado, e em seguida estou indo me encontrar com você.
Sai.
Antônio – Apressa-te, judeu gentio. O hebreu vai virar cristão, de tal modo tornou-se generoso.
Bassânio – Não gosto nem um pouco de palavras justas na mente de um canalha.
Antônio – Ora, vamos, não pode haver nisso motivo para desalento; os meus navios voltam para casa um mês antes do dia do pagamento.
Saem.
[1]. A Signoria era um pequeno grupo de nobres da aristocracia de Veneza com papel fundamental no governo da cidade-Estado. (N.T.)
[2]. À época de Shakespeare, acreditava-se que a malária era causada por ares ruins. (N.T.)
[3]. Famoso galeão espanhol, capturado pelos ingleses em Cadiz, em 1596. (N.T.)
[4]. Especiarias e seda eram transportadas em navios mercantes venezianos desde o Oriente e Alexandria (Egito) até Veneza, de onde eram reexportadas para a Europa Ocidental. (N.T.)
[5]. O deus romano Jano enxergava ao mesmo tempo em direções opostas (um rosto virado para um lado e outro rosto virado para o lado oposto, os dois rostos na mesma cabeça). Isso significa que essa entidade podia rir e chorar ao mesmo tempo. (N.T.)
[6]. Um papagaio pode imitar uma risada, mesmo ao som de música triste. (N.T.)
[7]. Herói grego descrito (com zombarias) no teatro elizabetano como velho, muito sério e taciturno. (N.T.)
[8].
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