Os judeus de Veneza eram obrigados a usar um distintivo na forma de um “O” amarelo. (N.T.)
[23]. Para os judeus, os cães eram sinônimo de sujeira, imundície. (N.T.)
SEGUNDO ATO
Ato 2, Cena I [Em Belmonte]
Fanfarra. Entram o Príncipe do Marrocos, um mouro de pele clara, todo vestido de branco, e três ou quatro acompanhantes com a pele escura e o traje típico dos marroquinos; com Pórcia, Nerissa e seu séquito.
Marrocos – Não me detesteis por minha aparência, esta libré parda[24] do reluzente Sol, de quem sou vizinho e quase parente. Trazei-me o homem mais alvo, nascido em região setentrional, onde o fogo de Febo[25] quase não derrete os pingentes de gelo, e vamos fazer uma incisão, por seu amor motivada, e que se prove assim qual sangue é o mais vermelho, o dele ou o meu. Eu vos digo, senhorita, este meu aspecto já meteu medo nos mais valorosos soldados. Pelo meu amor, eu vos juro: as mais reputadas virgens de nosso clima adoram esta minha figura. Eu não trocaria esta cor de pele, a menos que fosse para roubar vossos pensamentos, minha nobre rainha.
Pórcia – Em termos de escolha, não estou sendo conduzida apenas na direção exigente a que me levam estes meus olhos de donzela. Além do que, a loteria do meu destino me obstrui o direito a uma escolha voluntária. Mas, se meu pai não me tivesse colocado essa restrição, não me tivesse confinado com sua perspicácia a entregar-me em casamento a quem me ganhar pelos meios que lhe expus, então o senhor mesmo, renomado príncipe, seria uma escolha tão clara quanto qualquer outro pretendente em quem já pus os olhos, como candidato à minha afeição.
Marrocos – Por vossa resposta já sou grato. Portanto, peço-vos que me conduzais aos porta-joias, para que eu tente a minha sorte. Por esta cimitarra que matou o xá da Pérsia e também um príncipe persa que venceram três batalhas contra o sultão Solimão, eu queria com a ferocidade do meu olhar vencer os olhos mais duros que há, com minha coragem superar o coração mais intrépido deste mundo, arrancar das tetas da mãe-ursa seus filhotinhos, sim, e zombar do leão quando ele ruge para sua presa, tudo isso eu faria para vos conquistar, senhorita. Mas, ai de mim, se Hércules e Licas apostam nos dados para ver qual dos dois é melhor, a jogada de mais pontos pode sair, por azar, da mão mais fraca. Assim como Alcides, o nosso Hércules, foi derrotado por sua própria raiva, posso eu, guiado por Fortuna, essa deusa cega, perder aquilo que alguém de menos valor pode conseguir; e posso vir a morrer de desconsolo.
Pórcia – Você terá de aceitar o resultado. Das duas, uma: ou nem tenta escolher, ou jura, antes de escolher, que, se escolher mal, nunca mais irá conversar com moça alguma sobre casamento. Portanto, use de cautela.
Marrocos – Isso também não. Vamos lá, conduza-me à minha sorte.
Pórcia – Primeiro vamos até o templo;[26] depois do almoço, você tenta a sorte.
Marrocos – A sorte, então, fará de mim um homem abençoado… ou o mais amaldiçoado dentre todos!
Toque de cornetas. Saem.
Ato 2, Cena II [Em Veneza]
Entra Lancelote Gobbo, o Palhaço, sozinho.
Lancelote – Lógico, a minha consciência vai me ajudar a fugir desse judeu, o meu amo. O demônio está aqui no meu cotovelo, me tentando, me dizendo: “Gobbo, Lancelote Gobbo, meu bom Lancelote”, ou então: “Meu bom Gobbo”, ou então: “Meu bom Lancelote Gobbo, pernas pra que te quero, dê a partida, trate de fugir”. Minha consciência diz: “Não, tome tento, honesto Lancelote, tome tento, honesto Gobbo”, ou (como já foi dito antes)… “honesto Lancelote Gobbo: nada de fugir, despreza essa fuga, pega ela e chuta com os teus calcanhares”. Pois bem, o mais encorajador dos demônios está me pedindo para eu fazer a minha trouxa. “Em frente!”, me diz o demônio, “Embora, vamos!”, me diz o demônio. “Perante os céus, toma uma decisão, escolhe a valentia”, me diz o demônio, “e corre.” Bom, a minha consciência, dependurada no pescoço do meu coração, me diz com muita sapiência: “Meu honesto amigo Lancelote, sendo você filho de um homem honesto, ou melhor, filho de uma mulher honesta” (porque, de fato, o meu pai bem que bitocava de cá, apalpava de lá e tinha um certo bom gosto); bom, a minha consciência me diz: “Lancelote, não arredes pé!”. “Mexa-se”, diz o demônio. “Não te mexas daí”, diz a minha consciência. “Consciência”, digo eu, “a senhora me dá bons conselhos.” “Demônio”, digo eu, “o senhor me dá bons conselhos.” Se me deixo guiar por minha consciência, devo ficar com o judeu, meu amo, que… Deus que nos livre!… é uma espécie de demônio. Se escolho fugir do judeu, deixo-me guiar pelo demônio que… se me podem perdoar a expressão… é o diabo em pessoa. Certo, o judeu é a encarnação do diabo e, na minha consciência, minha consciência não passa de um tipo de consciência insensível, para me oferecer um conselho desses, de ficar com o judeu. O demônio me dá o conselho mais afável: vou fugir, diabo, e os meus calcanhares estão às vossas ordens, pois vou fugir.
Entra o Velho Gobbo com um cesto.
Gobbo – Meu jovem mestre, você, eu lhe peço, diga-me: qual o caminho para a casa do mestre judeu?
Lancelote [à parte] – Ah, céus! Este é o meu pai verdadeiro.
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