Dentre todas, Ponden Hall – construção finalizada em 1634 e pertencente à família Heaton, originalmente de Lancashire e presente na região desde o séc.XVI – é a que mais semelhanças guarda com Thrushcross Grange, além de ter sido frequentada por Emily e suas irmãs; nenhuma delas, porém, é instalada em propriedade de tão amplas dimensões. Patrick Brontë, o patriarca da família, teria chegado a confirmar a inspiração de Emily durante uma conversa em 1858.

2. Traduzido por “vento uivante”, wuthering é termo próprio ao dialeto de Yorkshire, no norte da Inglaterra. O romance usa o inglês dialetal juntamente com o inglês padrão (cuja formalização se baseia nos falares do sul do país, que tem em Londres seu maior centro) para marcar diferenças de pertencimento social e educação entre personagens.

3. Como Thrushcross Grange, Wuthering Heights é ficcionalmente construída à luz dos modelos de propriedade que cercavam os Brontë. Como unidade produtiva – e, nesse sentido, fundamentalmente diversa da residência alugada por Lockwood –, Wuthering Heights encontra equivalente em Top Withins, cujas ruínas resistem na região de Haworth (withins vem de wither, variante dialetal de wuther); já como modelo de edificação, guarda similaridades com High Sunderland Hall, outra propriedade da região, da qual tomaria por inspiração a fachada em pedra, e mesmo com Ponden Hall, de cuja casa principal recupera as dimensões.

4. É significativo que a data inscrita na fachada remonte a um momento de particular transformação: por volta de 1500, a região de Yorkshire conheceu movimentos importantes para a consolidação de uma Inglaterra unificada em torno da realeza instalada em Londres. Região de ocupação bastante conflituosa, à qual concorrem bretões, dinamarqueses, noruegueses e, finalmente, normandos, Yorkshire não só constitui limites culturalmente próprios, como se coloca em posição de resistência à Coroa inglesa. Ademais, a referência à história local parece replicada na relação entre o citadino Lockwood – um homem do sul da Inglaterra e, portanto, relacionado ao estável centro político do reino – e a “atmosfera tumultuosa” e insubmissa da região. A data remonta também à época de ocupação da região pelos Heaton, de Ponden Hall.

5. Em sua caracterização de Heathcliff, Lockwood romantiza a imagem de seu senhorio. “Cigano de pele escura” parece uma imagem mais pautada por estereótipos literários (próprios às pretensões esclarecidas da personagem) do que por algum nível de objetividade, e reforça a percepção da origem indeterminada. Literariamente, da perspectiva de Lockwood, tal descrição acaba por alinhar Heathcliff a uma tradição de personagens marcadas pelo mistério e pelo exotismo (quando não pela hybris trágica), cujo melhor exemplo é o mouro Otelo, de Shakespeare – no qual se digladiam a civilidade dos modos e a natureza indomável representada pelo ciúme.

6. Os “porcos possessos” remetem ao episódio do Evangelho de Lucas em que Jesus, quando em visita à região dos gerasenos, apazigua um homem possuído por demônios. Diante de uma vara de porcos, os demônios pediram a Jesus para invadir os animais, o que prontamente lhes foi concedido: “E, tendo saído os demônios do homem, entraram nos porcos, e a manada precipitou-se de um despenhadeiro no lago, e afogou-se.” (Lucas 8:33)

CAPÍTULO 2

A TARDE DE ONTEM chegou fria e enevoada. Eu planejava passá-la talvez junto à lareira em meu escritório, em vez de chapinhar pelo brejo e pela lama até Wuthering Heights.

Após o almoço, contudo (N.B.,7 eu almoço entre meio-dia e uma hora; a governanta, uma matrona que recebi junto com a casa, não consegue ou não quer compreender meu desejo de ser servido às cinco),8 subindo a escada com essa indolente intenção, vi uma criada de joelhos, cercada de escovas e baldes de carvão, levantando uma poeira dos infernos ao extinguir as chamas com montes de cinzas. O espetáculo fez com que eu recuasse de imediato. Peguei meu chapéu e, após uns seis quilômetros de caminhada, cheguei ao portão do jardim de Heathcliff bem a tempo de escapar aos primeiros e leves flocos de uma nevasca.

No topo desolado da colina, a terra estava dura, coberta por uma camada negra de geada, e o ar fazia cada membro do corpo tiritar. Como não conseguisse remover a corrente, pulei o portão, e, correndo pelo caminho de pedras bordejado por ocasionais groselheiras,9 bati em vão à porta até os nós dos dedos doerem e os cachorros começarem a uivar.

“Desgraçados!”, exclamei, mentalmente. “Merecem isolamento perpétuo de sua espécie por sua grosseira falta de hospitalidade. Eu, pelo menos, não trancaria minhas portas durante o dia. Não importa... vou entrar!”

Assim determinado, agarrei a tranca e sacudi-a veementemente. Numa janela redonda do celeiro, apareceu o rosto azedo de Joseph.

– O que é que o senhor quer? – gritou ele. – O patrão está lá embaixo no curral. O senhor contorne o barracão, se quiser falar com ele.

– Não há ninguém em casa para abrir a porta? – gritei também.

– Só a patroa, mas ela não vai abrir, nem que o senhor continue esmurrando até de noite.

– Por quê? Não pode dizer a ela quem sou, Joseph?

– Eu não! Não quero me meter nisso – resmungou, desaparecendo.

A neve começou a aumentar. Agarrei a tranca para fazer mais uma tentativa quando um jovem sem casaco e com um ancinho apoiado no ombro apareceu no pátio lá atrás. Pediu que eu o acompanhasse e, após atravessarmos uma lavanderia e uma área pavimentada onde havia um depósito de carvão, uma bomba d’água e um pombal, entramos no vasto, quente e alegre aposento em que eu fora recebido da primeira vez.

A sala reluzia acolhedora com o fogo generoso que vinha da lareira, alimentado com carvão, turfa e lenha. Perto da mesa, posta para um farto chá, tive o prazer de ver a “patroa”, alguém de cuja existência nem sequer suspeitara previamente.

Cumprimentei-a inclinando a cabeça, imaginando que haveria de me convidar a sentar. Ela olhou para mim, reclinada em sua cadeira, e continuou imóvel e calada.

– Que tempo horrível! – observei.