– Receio, sra. Heathcliff, que a porta tenha agora marcas do descaso dos seus criados. Penei até que eles me ouvissem!

Ela não abriu a boca. Eu a fitava – e ela me fitava também. Mantinha os olhos fixos em mim, de modo frio e indiferente, sobremaneira embaraçoso e desagradável.

– Sente-se – ordenou o jovem, com rispidez. – Ele não demora.

Obedeci; pigarreei e chamei a terrível Juno,10 que se dignou, naquele segundo encontro, a agitar a ponta da cauda em sinal de reconhecimento.

– Que belo animal! – recomecei. – Pretende doar os filhotes, senhora?

– Não são meus – respondeu a amável anfitriã, ainda mais cortante do que teria sido o próprio Heathcliff.

– Ah, seus favoritos são esses? – prossegui, indicando uma almofada cheia do que pareciam ser gatos.

– Estranho favoritismo – observou ela, com desdém.

Por azar, era uma pilha de coelhos mortos – pigarreei outra vez e me aproximei um pouco mais da lareira, repetindo meu comentário sobre o mau tempo que fazia aquela noite.

– O senhor não devia ter saído de casa – disse ela, levantando-se para pegar duas das latas pintadas de cima da lareira.

Antes, ela se encontrava na penumbra; agora tive uma visão nítida de seu corpo e de seu rosto. Era esbelta e mal parecia ter chegado à idade adulta; uma silhueta admirável, e o rostinho mais belo que eu jamais tivera o prazer de contemplar: traços delicados e harmoniosos; cachos louros, ou, antes, dourados, caíam soltos sobre seu pescoço delgado, e olhos que seriam irresistíveis caso sua expressão fosse agradável. Felizmente, para meu coração suscetível, o único sentimento que transmitiam pairava entre o desdém e uma espécie de desespero, estranho e pouco natural.

As latas estavam quase fora do seu alcance; fiz um gesto no sentido de ajudá-la, e ela se esquivou de mim como um sovina faria se alguém tentasse auxiliá-lo a contar seu ouro.

– Não preciso da sua ajuda – disse, rispidamente. – Posso apanhá-las eu mesma.

– Peço desculpas – apressei-me em responder.

– O senhor foi convidado para o chá? – perguntou, amarrando um avental por cima do elegante vestido preto e segurando uma colher de folhas de chá sobre a chaleira.

– Gostaria de uma xícara – respondi.

– Foi convidado? – repetiu ela.

– Não – falei, num meio sorriso. – A senhora é a pessoa ideal para me convidar.

Ela pôs o chá de volta na lata, colher e tudo, e voltou para a sua cadeira com enfado, a testa franzida e o lábio inferior espichado, feito uma criança prestes a chorar.

Enquanto isso, o rapaz jogara sobre o corpo uma jaqueta em péssimo estado e, aprumando-se diante do fogo, espiou-me com desdém pelo canto do olho, como se houvesse entre nós uma rivalidade mortal. Comecei a pensar que talvez não fosse um empregado; suas roupas e sua maneira de falar eram ambas grosseiras, sem traço algum da superioridade que se podia notar no sr. e na sra. Heathcliff; os cachos grossos e castanhos do cabelo eram ásperos e maltratados, as suíças invadiam desordenadamente as bochechas, e suas mãos eram encardidas como as de um criado. Mas sua atitude parecia independente, quase arrogante, e ele não demonstrava a menor subserviência perante a dona da casa.

Na ausência de provas claras a seu respeito, achei melhor abster-me de reparar em sua curiosa conduta; cinco minutos depois, a chegada de Heathcliff aliviou-me, de certo modo, da desconfortável posição em que me encontrava.

– Como vê, meu senhor, aqui estou, conforme prometido! – exclamei, adotando um ar animado. – E acho que devido ao mau tempo ficarei preso aqui por meia hora, se o senhor puder me abrigar.

– Meia hora? – repetiu ele, sacudindo os flocos de neve da roupa. – Não entendo por que escolheu um dia de nevasca para sair por aí. Sabe que corre o risco de se perder no pântano? Em noites como esta, pessoas que conhecem bem essas charnecas11 muitas vezes se perdem. E posso lhe dizer com segurança que o tempo não vai mudar tão cedo.

– Talvez um de seus rapazes possa me servir de guia e pernoitar em Grange. Poderia me ceder alguém?

– Não, não poderia.

– Ah, sim! Bem, então vou ter de contar com minha própria sagacidade.

– Hm!

– Vai fazer o chá? – indagou o sujeito de casaco roto, desviando seu olhar feroz de mim para a jovem.

– Ele vai tomar chá? – perguntou ela, dirigindo-se a Heathcliff.

– Faça o chá logo – foi a resposta, dita de modo tão furioso que me sobressaltei. O tom em que as palavras foram pronunciadas revelava má índole genuína. Eu já não me sentia inclinado a chamar Heathcliff de ótimo sujeito.

Quando os preparativos foram concluídos, ele me chamou, dizendo:

– Venha, aproxime sua cadeira.

E todos nós, incluindo o jovem rústico, instalamo-nos ao redor da mesa, um silêncio austero prevalecendo enquanto fazíamos nossa refeição.

Pensei que, se eu causara aquele mal-estar, era minha obrigação dissipá-lo. Não deviam se sentar à mesa todos os dias de modo tão sombrio e taciturno, e era impossível, por pior que fosse o seu humor, que aquelas caras fechadas fossem as do seu cotidiano.

– É estranho – comecei a dizer, entre uma xícara de chá e outra –, é estranho como o hábito pode moldar nossos gostos e ideias: muita gente não haveria de supor a felicidade numa vida tão completamente exilada do mundo como a sua, sr. Heathcliff. Ainda assim, arrisco-me a dizer que, cercado por sua família, com sua encantadora senhora presidindo seu lar e seu coração...

– Minha encantadora senhora! – interrompeu ele, com uma expressão quase diabólica no rosto. – Onde está ela, a minha encantadora senhora?

– Refiro-me à sua esposa, a sra. Heathcliff.

– Ah, sim... pelo visto o senhor insinua que seu espírito assumiu o posto de anjo da guarda, velando pela felicidade em Wuthering Heights, mesmo depois que seu corpo já se foi. É isso?

Percebendo ter cometido uma gafe, tentei corrigi-la. Deveria ter notado que a diferença de idade entre os dois era grande demais para a probabilidade de se tratar de marido e esposa.