Fica num vale entre dois morros – um vale elevado –, perto de um pântano, cuja turfa úmida serve para embalsamar, dizem, os poucos cadáveres ali depositados.18 O telhado vem resistindo, até aqui; mas como o pagamento do pastor é de apenas vinte libras por ano e uma casa com dois cômodos que ameaçam se transformar num só, não há quem esteja disposto a assumir a função de pastor ali, principalmente quando é sabido que o rebanho preferiria vê-lo morrer de fome a aumentar-lhe a receita com um único centavo do próprio bolso.19 No meu sonho, contudo, Jabez tinha uma congregação vasta e atenta; e pregava – meu Deus, que sermão! Dividido em quatrocentas e noventa partes, cada uma do tamanho de um sermão comum feito do púlpito, e cada uma discutindo um pecado diferente! Onde ele encontrara tantos assim, não sei. Tinha seu modo particular de interpretar o texto, e parecia necessário que o irmão cometesse pecados diferentes a cada ocasião.

Havia-os de todo tipo: transgressões curiosas que eu jamais imaginara até ali.

Ah, como estava ficando cansado. Como me contorcia e bocejava e cabeceava e despertava em sobressaltos! Eu me beliscava e esfregava os olhos e me levantava e voltava a me sentar, e dava cotoveladas em Joseph para que ele me informasse se aquilo algum dia teria fim!

Estava condenado a ouvir tudo. Finalmente, ele chegou ao “primeiro do septuagésimo primeiro”. Nesse ponto crítico, uma súbita inspiração desceu sobre mim; levantei-me e denunciei Jabez Branderham como culpado daquele pecado que cristão algum precisa perdoar.20

– Senhor – exclamei –, sentado aqui entre estas quatro paredes, suportei e perdoei as quatrocentas e noventa partes do seu sermão. Setenta vezes sete vezes peguei meu chapéu e estive a ponto de ir embora... Setenta vezes sete vezes o senhor me obrigou a retornar ao meu assento. Quatrocentas e noventa e uma partes já são demais. Companheiros de martírio, ao ataque! Vamos arrastá-lo para fora do púlpito e reduzi-lo a um punhado de átomos, para que ele suma para sempre!

– És tu o homem!21 – clamou Jabez após pausa solene, debruçando-se no púlpito. – Setenta vezes sete vezes contorceste teu rosto, setenta vezes sete vezes consultei minha alma... Eis a fraqueza humana; é preciso absolvê-la também! Chegamos ao primeiro do septuagésimo primeiro. Irmãos, executai a sentença a ele prescrita. Honrai todos os santos do Senhor!22

Ante essas palavras, a congregação inteira, brandindo seus bastões de peregrino, cercou-me rapidamente, e eu, não possuindo uma arma com que me defender, comecei a lutar com Joseph, meu agressor mais próximo e feroz, para me apoderar da sua. Na confluência da multidão, vários bastões se entrechocaram; golpes destinados a mim caíram sobre outras cabeças. Em pouco tempo, a capela ressoava com pancadas de ataque e defesa: cada um se voltava contra o vizinho,23 e Branderham, não querendo ficar parado, despejava seu zelo numa chuva de batidas fortes nas tábuas do púlpito, que respondiam tão prontamente a ponto de, para meu indizível alívio, acabar me acordando.

E o que sugerira o tumulto tremendo? O que fizera o papel de Jabez? Nada mais do que o galho de um pinheiro que tocava minha janela incitado pelo vento e batia com suas pinhas secas contra a vidraça!24

Escutei, hesitante, por um momento. Após descobrir o que perturbava meu sono, virei-me e adormeci, sonhando de novo – um sonho ainda pior do que o anterior, se é que isso era possível.

Dessa vez, eu me lembrava de que estava deitado no compartimento de carvalho e ouvia claramente a ventania e a neve açoitando o telhado; também ouvia o galho do pinheiro repetir seu ruído incômodo, e sabia de onde vinha o barulho – mas me incomodava de tal modo que resolvi silenciá-lo. Levantei-me e tentei abrir a janela. A lingueta estava soldada na armela – fato que eu notara quando acordado, mas logo esquecera.

– Tenho que acabar com isso, de qualquer maneira! – murmurei, atravessando a vidraça com o punho fechado e esticando o braço a fim de agarrar o galho inoportuno. Em vez disso, meus dedos se fecharam sobre os de uma pequenina e gélida mão!

O horror intenso do pesadelo me invadiu: tentei puxar de volta o braço, mas a mão se apoderara dele, e uma voz extremamente melancólica soluçou:

– Deixe-me entrar... deixe-me entrar!

– Quem é você? – perguntei, enquanto lutava para me soltar.

– Catherine Linton – respondeu a voz, trêmula (por que pensei em Linton? Tinha lido o nome Earnshaw vinte vezes mais). – Voltei para casa. Estava perdida na charneca!

Enquanto ela falava, discerni na escuridão um rosto de criança olhando pela janela. O terror tornou-me cruel; vendo que era inútil tentar me livrar da criatura, puxei-lhe o punho através da vidraça quebrada, roçando-o para dentro e para fora até que o sangue começou a escorrer e encharcou os lençóis. Ainda assim, ela choramingava:

– Deixe-me entrar! – E seguia me apertando firmemente, quase me enlouquecendo de medo.

– Como posso fazer isso? – perguntei, por fim. – Solte-me, se quer que eu a deixe entrar!

Os dedos relaxaram, puxei os meus para dentro pelo buraco, empilhei depressa os livros numa pirâmide a fim de tapá-lo e cobri os ouvidos para não ouvir o pedido choroso.

Acho que fiquei assim por uns quinze minutos; no momento em que os destapei, contudo, lá estava o triste gemido outra vez!

– Vá embora! – gritei. – Jamais vou deixá-la entrar, nem que fique aí pedindo por vinte anos.

– Já faz vinte anos – a voz se lamuriou –, vinte anos. Estou perdida faz vinte anos!

Com isso, comecei a ouvi-la arranhar de leve a vidraça, e a pilha de livros se moveu, como se alguém a empurrasse de fora.

Tentei me levantar, mas não conseguia me mexer... então dei um grito, num frenesi de pavor.

Para meu espanto, descobri que o grito não foi imaginário: passos rápidos se aproximaram da porta do meu quarto e alguém a abriu com força; uma luz brilhou nos quadrados no alto do compartimento. Sentei-me, trêmulo, e enxuguei o suor da testa. O intruso pareceu hesitar, e murmurou qualquer coisa para si mesmo.

Por fim, perguntou, quase que num sussurro, e obviamente sem esperar ouvir uma resposta:

– Tem alguém aí?

Achei melhor confessar minha presença, pois reconheci a voz de Heath-cliff e temi que ele continuasse a busca, se ficasse quieto.

Com essa intenção, abri os painéis da porta.