E se não fizer isso falo ao seu pai das três surras que me deu esta semana, e mostro a ele o meu braço, que está todo roxo, até o ombro.
Hindley mostrou-lhe a língua e lhe deu uma bofetada nas orelhas.
– É melhor fazer logo o que estou dizendo – insistiu Heathcliff, fugindo para a varanda (estavam na estrebaria). – Vai ter que obedecer mesmo. E se eu falar das surras, vai recebê-las de volta com juros.
– Fora, cachorro! – gritou Hindley, ameaçando-o com um padrão de ferro usado para pesar batatas e feno.
– Jogue isso em mim – replicou ele, imóvel –, e conto como você disse que vai me expulsar de casa assim que ele morrer; veremos se não é você que vai se ver na rua na mesma hora!
Hindley jogou o peso, acertando-o no peito; Heathcliff caiu, mas se pôs de pé no mesmo instante, cambaleando, pálido e sem fôlego. Se eu não o tivesse impedido, teria ido ter com o patrão naquele mesmo instante e obtido sua vingança deixando sua situação falar por ele e revelando quem fora o responsável.
– Fique com o meu potro, então, cigano! – exclamou o jovem Earnshaw. – E torço para que ele lhe parta o pescoço. Fique com ele, seu intrometido, e vá para o inferno! E tire do meu pai tudo o que ele tem, para que só então ele saiba quem você é, filho do Diabo! Leve o cavalo, tomara que ele arrebente seus miolos com um coice!
Heathcliff tinha ido soltar o animal e levá-lo para sua própria baia. Estava passando atrás do potro quando Hindley concluiu a fala empurrando-o para baixo das patas e, sem parar para ver se sua esperança tinha se concretizado, fugiu o mais depressa que pôde.
Fiquei espantada ao ver a calma com que o garoto se levantou e continuou o que estava fazendo. Trocou as selas, depois se sentou num feixe de feno até passar a vertigem que o golpe violento causara, antes de entrar em casa.
Consegui persuadi-lo com facilidade a pôr a culpa dos machucados no cavalo. Agora que já conseguira o que desejava, ele não se importava com a história que seria contada. Reclamava tão pouco de eventos como aquele, na verdade, que cheguei a pensar que não era vingativo. Estava completamente enganada, como vai ver.
30. Algumas espécies de cuco do Velho Mundo são parasitárias. A fêmea do cuco deposita os ovos em ninhos de outra espécie (geralmente de pequenos pássaros que se alimentem de insetos, como o rouxinol), cuja fêmea os trata como fossem seus. Não identificada a diferença, o cuco nasce e expulsa os demais ovos e recém-nascidos do ninho, sendo alimentado como se fosse a própria cria da mãe.
31. Sobre a estrutura narrativa do livro, ver a Apresentação a este volume.
32. Importante cidade portuária localizada na região leste da ilha da Grã-Bretanha, Liverpool fica a cerca de cem quilômetros do vilarejo de Haworth, terra natal dos Brontë. A distância descrita entre a propriedade dos Earnshaw e a referência à cidade real serve de argumento para a identificação da mais que provável inspiração de Emily Brontë para a Gimmerton do romance.
33. Os três reinos são Escócia, Inglaterra e Irlanda. Trata-se de um pequeno anacronismo de Nelly Dean, pois sua narrativa remonta a um tempo em que ainda não se havia celebrado o Ato de União entre Inglaterra e Irlanda, de 1800. O acordo entre os reinos formou o Reino Unido e completou um processo iniciado em 1707 com o Tratado de União assinado entre Inglaterra e Escócia, constituindo a Grã-Bretanha.
34. Embora fundada no séc.XIII, a vocação portuária e comercial de Liverpool só se realizaria em fins do séc.XVII, com seu ingresso no tráfico negreiro. À época da viagem do sr. Earnshaw (1771), Liverpool não só era o mais importante porto de escravos da Inglaterra, como se destacava na condição de centro comercial internacional, recebendo navios, mercadorias e indivíduos dos quatro continentes. O estranhamento étnico diante de Heathcliff integra os comentários de diferentes personagens do romance; porém, à medida que se indetermina sob diferentes rubricas a origem do protagonista, reforça-se sua caracterização como a de um “estranho” ou “intruso”, sujeito cujas origens (foi encontrado numa cidade com padrões modernos de socialização) refletem um espaço de regras, relações e valores bastante diversos dos consagrados pelas tradições populares pré-modernas.
35. Os termos que formam o nome Heathcliff – “heath”, urzal + “cliff”, penhasco; “urzal no/do penhasco” – estão diretamente associados à natureza da região da charneca (e à essência da personagem, como se verá).
36. Os termos de Nelly Dean para estabelecer a primeira perspectiva de Hindley sobre Heathcliff estão calcados em relações hierárquicas de poder e posse e marcam a ilegitimidade do protagonista, não só forasteiro como estranho e externo às leis da família e sua propriedade.
CAPÍTULO 5
COM O PASSAR do tempo, a saúde do sr. Earnshaw começou a declinar. Ele fora um homem ativo e saudável, mas as forças o abandonaram repentinamente; ao se ver confinado ao canto da lareira, foi ficando atrozmente irritável. Qualquer coisa o incomodava, e a mera suspeita de que sua autoridade estivesse sendo questionada quase o fazia perder a cabeça.
Isso acontecia em especial se alguém tentasse se impor ao seu preferido ou tiranizá-lo. Não tolerava que se dissesse uma única palavra contra ele e parecia ter metido na cabeça a ideia de que, pelo fato de gostar de Heathcliff, todos os outros o odiavam e desejavam lhe fazer mal.
Isso era uma desvantagem para o rapaz, pois os mais sensíveis de nós não queriam aborrecer o patrão, então éramos complacentes com sua parcialidade; e essa complacência alimentava o orgulho e o temperamento voluntarioso do garoto.
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