Fiquei com medo, e a sra. Earnshaw estava a ponto de atirá-lo porta afora. Ficou furiosa, perguntando ao marido o que tinha dado nele para trazer aquele cigano para dentro de casa, quando já tinham filhos seus para alimentar e cuidar. O que ele pretendia fazer com a criança? Teria enlouquecido?

O patrão tentou explicar o que havia acontecido, mas estava mesmo quase morto de cansaço, e, em meio às broncas dela, tudo o que consegui entender foi que o havia encontrado faminto e sem casa, perambulando mudo pelas ruas de Liverpool; apanhara-o no colo e perguntara de quem era. Ninguém soubera dizer, explicou o patrão, que, tendo tempo e dinheiro limitados, achou melhor levá-lo de imediato para casa consigo do que gastar com ele recursos inúteis ali – pois estava determinado a não deixar o menino como o havia encontrado.

Bem, por fim minha patroa resmungou até se acalmar, e o sr. Earnshaw me disse que lavasse o menino, lhe desse roupas limpas e o deixasse dormir com seus filhos.

Hindley e Cathy contentaram-se com olhar e ouvir até a paz ser restabelecida. Em seguida, ambos começaram a procurar nos bolsos do pai os presentes que ele lhes prometera. Hindley era um menino de quatorze anos, mas quando tirou dali o que havia sido uma rabeca, esmagada em pedaços dentro do casaco, abriu o berreiro. E Cathy, ao ficar sabendo que o patrão perdera seu chicote enquanto cuidava do estranho, exibiu seu humor arreganhando os dentes para a criança e cuspindo nela – o que lhe valeu uma sonora bofetada do pai, destinada a lhe ensinar bons modos.

Recusaram-se terminantemente a partilhar a cama – ou mesmo o quarto – com a criança. De minha parte, nada mais me ocorreu fazer além de colocá-lo no patamar da escada, torcendo para que já não estivesse ali no dia seguinte. Por acaso, ou atraída por sua voz, a criança rastejou até a porta do sr. Earnshaw, que o encontrou ali ao sair do quarto de manhã. Perguntou como ele chegara ali; fui obrigada a confessar, e, como recompensa por minha covardia e desumanidade, expulsaram-me da casa.

Assim foi a apresentação de Heathcliff à família. Quando voltei, alguns dias depois (não considerava definitivo meu banimento), fiquei sabendo que o haviam batizado de “Heathcliff”: era o nome de um filho morto ainda na infância, e lhe tem servido desde então, como nome e sobrenome.35

A srta. Cathy e ele já eram bons amigos, mas Hindley o odiava. Para ser honesta, eu também. Nós o atormentávamos vergonhosamente, pois eu ainda não tinha entendimento bastante para perceber a maldade que cometia, e a patroa nunca o defendia ou interferia em favor dele quando o via injustiçado.

Heathcliff parecia uma criança taciturna e paciente, endurecida, talvez, pelos maus-tratos: tolerava as bofetadas de Hindley sem pestanejar ou derramar uma lágrima, e meus beliscões só o faziam respirar fundo e abrir os olhos, como se tivesse se machucado por acaso e ninguém fosse culpado.

Essa resistência deixava o velho Earnshaw furioso quando descobria o filho perseguindo o pobre menino sem pai, como o chamava. Afeiçoou-se estranhamente a Heathcliff, acreditando em que tudo o que ele dizia (o que era bem pouco, aliás, e em geral a verdade), e mimava-o muito mais do que a Cathy, que era por demais levada e desobediente para ocupar o posto de favorita.

Assim, desde o começo, Heathcliff granjeou antipatia na casa. Quando a sra. Earnshaw morreu, menos de dois anos depois, o jovem patrão já aprendera a considerar o pai um opressor mais do que um amigo, e Heathcliff como um usurpador do afeto do pai e de seus próprios privilégios.36 Tudo isso o tornou um jovem amargo.

Eu me condoía dele, num certo sentido; mas quando as crianças tiveram sarampo e precisei cuidar delas, assumindo de repente a função de uma mulher adulta, mudei de ideia. Heathcliff ficou muito doente, entre a vida e a morte, e, nos piores momentos, não queria que eu me afastasse da sua cabeceira. Acho que sentia que eu cuidava dele com muita dedicação, e não tinha sagacidade suficiente para perceber que era compelida a fazê-lo. A bem da verdade, porém, devo dizer que ele era a criança mais quieta do mundo. A diferença entre ele e os outros me forçou a ser menos parcial. Cathy e seu irmão importunavam-me o tempo todo, e ele era dócil como um cordeiro, ainda que por estoicismo, e não por mansidão.

Heathcliff se recuperou, o que o médico afirmou ter acontecido em grande parte graças a mim, elogiando minha dedicação. Senti-me lisonjeada, e meu coração amoleceu pela criatura que me fizera receber tais elogios, de modo que Hindley perdeu sua última aliada. Ainda assim, não me era possível simpatizar com Heathcliff, e, com frequência, me perguntei o que meu patrão tanto via no menino taciturno que nunca, ao que me lembre, recompensou sua bondade com o menor sinal de gratidão. Não que fosse insolente com seu benfeitor; era simplesmente insensível, embora tivesse plena consciência do lugar especial que ocupava em seu coração, e de que bastava dizer uma palavra e a casa inteira seria obrigada a se curvar aos seus desejos.

Lembro-me de uma vez, por exemplo, em que o sr. Earnshaw havia comprado um par de potros na feira local, dando um a cada um dos rapazes. Heathcliff escolheu o mais bonito, mas pouco depois ele começou a mancar; ao descobrir isso, Heathcliff disse a Hindley:

– Você tem que trocar de cavalo comigo, não gosto do meu.