Ele recusa a imagem de escritora instintiva e incapaz de dominar seu talento criativo, que Charlotte transmitira da irmã, e deixa evidente o meticuloso planejamento da cronologia do romance, valorizando suas alternâncias temporais. Além disso, desvenda as simetrias entre as famílias das duas grandes mansões senhoriais, que permeiam todo o enredo.

Finalmente, em 1934, coube a Lord David Cecil firmar de vez a reputação da escritora, numa palestra que fez na universidade de Oxford (posteriormente reunida a outras e publicada), na qual ressaltava a força poética e filosófica da tensão subjacente a todo o enredo.7 Segundo ele, Emily investigava o lugar que seus personagens ocupam no cosmo, onde tudo – vivo ou não, intelectual ou físico – é animado por um de dois princípios espirituais: o da tempestade, que é áspero, impiedoso, dinâmico e selvagem; e o da calma, que é gentil, capaz de perdoar, passivo e domesticado.

A distinção que costumamos fazer entre o homem e a natureza, ainda de acordo com Lord David, não existia para Emily Brontë. Ao invés disso, em sua obra, esses dois planos são igualmente dotados de vida; um homem furioso e um céu de borrasca manifestam ambos, literalmente, o princípio da tempestade. Disso resulta uma visão de mundo compreensiva e totalizante.

Para Emily Brontë, diz Lord David, a calma e a tempestade, apesar de estarem em aparente oposição, não se excluem. Funcionam como as duas metades do real ou as duas metades de uma harmonia superior. Se nossa percepção vê conflito entre elas, é porque no mundo terreno tais princípios são desviados de seu curso natural e impedem o avanço um do outro. Forças positivas, assim, transformam-se em negativas. A calma torna-se uma fonte de fraqueza, não de harmonia, enquanto a tempestade perde seu poder criativo, tornando-se apenas um distúrbio. Mas quando fluem livremente, no cosmo ou no espírito humano, elas convivem, e mesmo no mundo terreno seus embates são transitórios, caminhando para um princípio unificador, o do equilíbrio. Tais princípios, conclui o grande crítico dos vitorianos, não são nem bons nem maus, apenas existem, e portanto O morro dos ventos uivantes não é um romance preocupado com questões moralizantes e julgamentos simples. Ele trata de um mundo pré-moral.

Daí em diante, estava aberto o caminho para a elevação de Emily Brontë à condição de uma autora clássica e incontornável, e também para que inúmeras vertentes críticas se debruçassem sobre o livro. Seus temas principais – o choque das forças naturais, as diferenças socioeconômicas, a ânsia por alguma forma de transcendência, o abuso do poder patriarcal, a vida familiar e a infância, os efeitos do sofrimento intenso, o confinamento e a fuga autoimpostos, o sentimento de se estar deslocado, despossuído ou em exílio, os problemas de comunicação e entendimento entre as pessoas – geraram interpretações marxistas, feministas, freudianas, junguianas, psicanalíticas, religiosas, metafísicas e místicas.

Não faltaram, é claro, as indefectíveis tentativas de localizar no enredo marcas autobiográficas de Emily Brontë: a misantropia de Heathcliff equivaleria à do pai da escritora; as mortes precoces de vários personagens diante da tristeza e da doença, como as de sua mãe e irmãs mais velhas; a paisagem das charnecas que ela amava; a vida isolada do norte da Inglaterra, como a que escolheu viver etc.

Embora todas essas leituras tenham uma dose de verdade, do ponto de vista da história da literatura o romance liga-se mesmo é às escolas romântica e gótica da literatura inglesa. São elementos comuns com a escola romântica, entre outros, a consciência libertada por experiências radicais; o amor pela natureza dirigindo-se não apenas a seus aspectos bucólicos, mas também a suas convulsões; a natureza como refúgio às convenções sociais; os amores e paixões exacerbados entre as pessoas; o foco nas reações individuais de cada personagem. Tipicamente góticos, por outro lado, são castelos ou residências antigas usados como cenário; a aparição de assombrações; um clima de melancolia e dor; eventos terrivelmente cruéis ou a ameaça deles; cenas sombrias e paisagens naturais extremas; um herói também vilão.

Como todo bom clássico, O morro dos ventos uivantes tem várias portas, cabendo ao leitor escolher por qual delas prefere entrar. O difícil é sair, pois o efeito da leitura ficará, sem dúvida, entranhado em sua lembrança.

RODRIGO LACERDA8

1. Lucasta Miller, The Brontë Myth. Nova York, Vintage, 2002.

2. Ellen Nussey, Reminiscences of Charlotte Brontë, 1871.

3. Eva Hope, Queens of Literature of the Victorian Era, 1886.

4. Elizabeth Cleghorn Gaskell, The Life of Charlotte Brontë, 1870.

5. Os textos estão incluídos neste volume, às p.361-72.

6. Londres, Hogarth Press, 1926.

7. Early Victorian Novelists: Essays in Revaluation. Londres, Constable & Co., 1934.

8. Rodrigo Lacerda é escritor, autor de O fazedor de velhos, Vista do Rio e Hamlet ou Amleto?, entre outros. Tradutor de autores como William Faulkner, Raymond Carver e Alexandre Dumas (Prêmio Jabuti de tradução por O conde de Monte Cristo e Os três mosqueteiros, ambas em parceria com André Telles), dirige a coleção Clássicos Zahar.

O MORRO DOS VENTOS UIVANTES

CAPÍTULO 1

1801. Acabo de regressar de uma visita a meu senhorio – o único vizinho com o qual terei de me preocupar. Que bela região, esta! Não acredito que, em toda a Inglaterra, eu pudesse ter me estabelecido num lugar tão completamente afastado da agitação da sociedade. O paraíso dos misantropos – e o sr. Heathcliff e eu somos um par bem adequado para dividir entre nós a desolação.