Todos têm sua voz própria, até com eventuais diferenças de linguagem, por uma questão de classe ou por cacoetes individuais de fala. É como se Nelly, ao contar o que disseram, se lembrasse de cada palavra, de cada entonação, de cada vírgula de seus depoimentos. É como se “encarnassem” na empregada. Se admitirmos que essas testemunhas também narram, o livro passa a ter não mais um ou dois narradores, e sim vários.
Mas ainda falta a última face do amálgama literário criado por Emily Brontë. Aquilo que lemos não é, em si, o diálogo entre Lockwood e Nelly: é uma recapitulação do diálogo, feita por Lockwood. Os depoimentos de terceiros, para chegarem até nós, passaram por Nelly e, depois, por ele próprio. Então, ao fim do livro, é como se o narrador original engolisse todos os outros narradores novamente.
Embora essas alternâncias de voz narrativa venham intermediadas por véus e filtros mais ou menos nítidos para o leitor, e embora ao explicá-los eles pareçam mais intrincados do que são na leitura, o uso da primeira pessoa por todos que contam a história disfarça muito bem a complexidade da estrutura. O leitor, ao invés de sentir-se distanciado da trama, é atraído praticamente para dentro dela. O calor das emoções nos chega sempre da boca de quem as viveu ou presenciou.
O fluxo da história também não é contínuo em O morro dos ventos uivantes. Ela começa em 1801, o presente da narrativa; então recua trinta anos, para 1771, quando Heathcliff foi trazido para a fazenda; depois avança uns 27 anos – conforme Nelly recapitula os acontecimentos na vida dos habitantes de Thrushcross Grange e Wuthering Heights –, até se encontrar com o presente outra vez; e por fim avança mais dois anos, chegando a 1802-03.
Tal organização temporal, pode-se supor, era incomum em romances vitorianos, mais tradicionalmente lineares, bem como a complexidade na estrutura narrativa. Esses dois recursos de construção literária se tornariam mais frequentes apenas no modernismo no século XX, seis ou sete décadas após a morte de Emily Brontë. Aliados à escabrosa violência psicológica que irrompe entre os personagens, são fatores que talvez expliquem a recepção ambígua a O morro dos ventos uivantes na época de seu lançamento. Embora os críticos louvassem a força da história e o poder de fabulação da escritora, o romance instaurava um mal-estar que os incomodava.
Um maço composto por cinco resenhas sobre o livro foi encontrado na mesa de Emily após sua morte. Uma delas, de fonte desconhecida (e referindo-se a Emily como homem), contém o seguinte trecho:
Esse é um trabalho que demonstra grande habilidade e muitos capítulos, para cuja produção um talento raro foi necessário. Ao mesmo tempo, os materiais que o autor colocou à sua disposição foram escassos. Nos recursos de sua própria mente e em suas evidentemente vívidas percepções das peculiaridades de caráter – em resumo, em seu conhecimento da natureza humana – ele encontrou tudo de que precisava.
Em outra resenha, publicada no Jerrold’s Weekly Newspaper, em 1848, lê-se:
Intui-se um poder muito grande nesse livro, mas um poder sem propósito, que desejamos fortemente ver mais bem aplicado. Parece-nos muito provável que ao autor de O morro dos ventos uivantes falte apenas um talento mais bem treinado para formar um grande artista; talvez, um grande artista dramático. Suas qualidades são, no momento, excessivas; um defeito muito mais promissor, vale lembrar, do que se fossem escassas.
Outra resenha ainda, saída de um veículo chamado Atlas, parece efetivamente em choque diante da trama psicológica:
O morro dos ventos uivantes é uma história mais estranha que artística. Em todos os capítulos, há evidências de uma forma áspera de poder – do qual seu detentor aparentemente jamais cogita tirar o melhor dos proveitos. O efeito geral é indizivelmente doloroso. Não conhecemos, em todo o repertório de nossa literatura ficcional, algo que apresente imagens tão chocantes das piores formas de humanidade ... . O trabalho de Currer Bell [Charlotte] é uma grande performance; o de Ellis Bell [Emily] é apenas uma promessa, mas uma promessa colossal.
Como se pode ver, há um misto de admiração e estranhamento em todas essas impressões de leitura. O conteúdo humano com que o romance trabalha, sem dúvida, era muito forte para os padrões de gosto da primeira metade do século XIX. No entanto, com o passar do tempo, as coisas foram mudando.
Talvez a pedra de toque na virada da crítica em relação ao romance tenha sido Emily Brontë: uma biografia, publicada em 1883 pela escritora e estudiosa de literatura inglesa Mary F. Robinson:
Emily Brontë é de uma categoria diferente. Sua imaginação é mais restrita, porém mais intensa; ela vê menos, mas o que vê é absolutamente presente: nenhum escritor jamais descreveu as charnecas, o vento e os céus com sua fidelidade apaixonada, mas isso não é tudo que ela descreve da Natureza. ... Apenas uma imaginação da mais fina e rara sensibilidade caminharia com tão absoluta segurança pela trilha, estreita como um fio de cabelo, que conecta nosso mundo à terra dos sonhos. Poucos percorreram essa ponte perigosa com o destemor de Emily Brontë: este é seu território e nele merece os maiores elogios.
Dado o primeiro passo para a glória póstuma, em 1926 foi a vez de o crítico Charles Percy Sanger, num famoso ensaio intitulado “A estrutura em O morro dos ventos uivantes”,6 contribuir para a reputação de Emily.
1 comment