O primo Basílio

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Eça de Queiroz:
a alma realista portuguesa

“O Realismo é a anatomia do caráter.”

Eça de Queiroz

Em 25 de novembro de 1845, envolto em mistério tipicamente romântico, vem ao mundo o maior nome da prosa realista portuguesa: José Maria de Eça de Queiroz. Por que Carolina Augusta Pereira de Eça, solteira, com dezenove anos, filha de boa família, refugia-se em Póvoa de Varzim, Portugal, para dar à luz o menino? Por que não se casa antes do nascimento do garoto com o recém-formado em Direito José Maria de Almeida Teixeira de Queiroz, solteiro, com vinte e cinco anos, também filho de família tradicional? Por que, no registro de nascimento do escritor, consta a anotação inverossímil “mãe incógnita” e o reconhecimento paterno? Por que seus pais, vindo a contrair matrimônio quatro anos após o nascimento, nunca o trouxeram para viver em família, junto com cinco irmãos, que nascem nos anos subsequentes? As diversas pesquisas biográficas, até hoje, não conseguem responder a essas perguntas.

No entanto, sem dúvida, sua história nebulosa – ou ausência de história, como preferia o escritor – não obscurece o vigor de sua obra literária. O fato de viver longe dos pais, leva-o a ser criado, inicialmente, pela madrinha. A morte dela transfere-o para a companhia dos avós paternos, aos seis anos. O falecimento deles acaba por encaminhá-lo, aos dez anos, para o internato, na cidade do Porto. Essas sucessivas demonstrações de abandono, entretanto, aparentemente, não abatem o menino. Como interno no Colégio da Lapa, manifesta seu gosto pelas Letras e torna-se amigo de Ramalho Ortigão, com quem manteria esses laços até o fim de seus dias, em 16 de agosto de 1900.

Com apenas dezesseis anos, Eça de Queiroz matricula-se no Curso de Direito, em Coimbra. Insere-se, dessa maneira, na vida intelectual portuguesa. A literatura do país encontra-se numa encruzilhada: de um lado, os ultrarromânticos; de outro, um novo caminho traçado pelas ideias vindas da França e da Alemanha – o Realismo. Aderindo a essas concepções literárias avançadas, surge uma brilhante geração de escritores – liderados por Antero de Quental –, dispostos a tirar Portugal do atraso e a equipará-lo às nações mais avançadas da Europa. Explode a “Questão Coimbrã”, em 1865. A despeito das leituras de Comte, Taine, Darwin, que lhe dariam bases ideológicas para as futuras obras realistas, Eça de Queiroz, tímido, não chega a participar ativamente dessa grande polêmica.

As primeiras obras impressas de Eça de Queiroz – à moda romântica, tinham forte caráter sentimental – são textos em prosa poética, intitulados Notas Marginais, publicados na “Gazeta de Portugal”, em 1866. Em 1905, esses textos são editados com o título Prosas Bárbaras. Formam a produção de uma primeira fase, anterior ao sucesso do ideário realista. Ao lado da atividade intelectual, já diplomado, aos vinte e um anos, parte para Lisboa, onde pratica a advocacia e atua como diretor de um semanário. Por essa época – 1870 –, em colaboração com Ramalho Ortigão, publica O mistério da estrada de Sintra, no Diário de Notícias; funda As Farpas, revista de crítica social; participa, no Cassino Lisboense, das “Conferências Democráticas” – com a palestra “Realismo” –, proibidas pelo governo. Traça-se, assim, o caminho do realista fervoroso e combativo.

A vida profissional de Eça só se define em 1872, com a sua entrada na carreira diplomática. Começa aí um longo exílio, que, paulatinamente, molda-o literariamente. Em 1875, sai a primeira versão de O crime do Padre Amaro, considerado o primeiro grande divisor de águas na obra do romancista, visto que marca o início da produção de uma fase tipicamente realista. Um ano depois, conclui O primo Basílio e, em 1880, Os Maias, seu livro mais ambicioso, só publicado em 1888. Esses três romances constituem a base da chamada fase realista de Eça de Queiroz.

O escritor tem a intenção, nessa fase, de corrigir os vícios da burguesia portuguesa, utilizando-se da crítica de costumes e da sátira. Escreve, portanto, romances de tese – em moda, tinham como ponto de partida uma ideia que deveria ser apresentada por meio das ações dos personagens – que, via de regra, relatam a influência do meio sobre o indivíduo.

O primo Basílio, que tem como subtítulo Episódio doméstico, bem exemplifica essa afirmação. Inspirado em Madame Bovary, romance do francês inaugurador do Realismo, Gustave Flaubert, essa obra de Eça ataca a família lisboeta, servindo-se de um pequeno quadro doméstico. O narrador caracteriza-se pela objetividade e senso de detalhe. Busca desvendar imparcialmente as mazelas da média burguesia, da intelectualidade, as questões morais, as relações sociais.

Para tal, centra o foco narrativo em Luísa. Ela e Jorge formam o típico casal da burguesia lisboeta. Jorge, funcionário público, viaja a trabalho para o interior de Portugal. A monotonia da vida de casada, que Luísa já tentava atenuar por meio de leituras românticas, torna-se insuportável, e ela se envolve com o primo Basílio, seu primeiro amor, recém-chegado de Paris. Instaurado o triângulo amoroso, há necessidade do fator de desestabilização: Juliana, a invejosa e vingativa criada, que, encontrando cartas de Luísa dirigidas a Basílio, passa a chantagear a patroa, ameaçando entregar as provas da traição a Jorge.

Colocando, lado a lado, a classe média e a baixa, o narrador propõe-nos uma comparação: que motivos levam as duas personagens – Luísa e Juliana – a agirem de formas tão antagônicas? A primeira é impelida pela gratuidade e pela falta de consciência moral; a segunda pela necessidade e pela ambição. Basílio busca apenas uma aventura, uma forma machista de entretenimento.