Jorge é, também, a seu modo, um superficial em suas ações. Dessa forma, a inconsistência psicológica dessa burguesia transforma os personagens em marionetes dos acontecimentos: reflexo da própria estagnação social e econômica de Portugal, não passam de meros produtos das necessidades biológicas (ressalva feita a Juliana).
Em O primo Basílio ainda percebemos várias caricaturas – expediente tão grato ao Realismo. Dona Felicidade, cinquentona dada a achaques, relatados de modo exagerado, provocados por gases, é platonicamente apaixonada por Acácio e constitui uma caricatura da submissão feminina. Julião Zuarte representa o rancor dos menos favorecidos economicamente em relação aos mais ricos. Ernestinho, devido à sua debilidade física, simboliza a debilidade, o ridículo da obra romântica. Esses personagens que nos fazem rir, apesar de não ter sido essa a intenção do autor, são apresentados por meio de uma linguagem moderna, mais coloquial à época, comprovando que Eça de Queiroz foi o grande renovador da prosa portuguesa do século XIX.
Contudo, o vigor literário do romancista não se esgota na dita segunda fase, a realista. Em 1885, aos quarenta anos, dá uma virada na sua vida, casando-se com Emília de Castro Pamplona, mulher conservadora, religiosa, serena, inteligente, que consegue disciplinar a vida de Eça, como desejava o escritor. A literatura por ele produzida após o casamento revela em muito o conservadorismo de sua mulher e a previsibilidade da vida de casado. Em 1887, vem a público A relíquia, livro no qual a hipocrisia religiosa e a falsidade humana são tratadas de forma magistral.
Abandonando as ideias revolucionárias, Eça incorpora o pessimismo que assola Portugal no período. O país passa por uma crise político-econômica e há, também, a crise cultural ditada pelo esgotamento dos ideais positivistas. A ilustre casa de Ramires (1900) e A cidade e as serras (publicado postumamente, em 1901) atestam que o escritor, finalmente, faz as pazes com a vida e com o país que tanto criticou.
Maria Tereza Faria
O PRIMO BASÍLIO
Episódio doméstico
I
Tinham dado onze horas no cuco da sala de jantar. Jorge fechou o volume de Luís Figuier que estivera folheando devagar, estirado na velha voltaire de marroquim escuro, espreguiçou-se, bocejou e disse:
– Tu não te vais vestir, Luísa?
– Logo.
Ficara sentada à mesa, a ler o Diário de Notícias, no seu roupão de manhã de fazenda preta, bordado a soutache, com largos botões de madrepérola; o cabelo louro um pouco desmanchado, com um tom seco do calor do travesseiro, enrolava-se, torcido no alto da cabeça pequenina, de perfil bonito; a sua pele tinha a brancura tenra e láctea das louras: com o cotovelo encostado à mesa acariciava a orelha, e, no movimento lento e suave dos seus dedos, dois anéis de rubis miudinhos davam cintilações escarlates.
Tinham acabado de almoçar.
A sala esteirada alegrava, com o seu teto de madeira pintado a branco, o seu papel claro de ramagens verdes. Era em julho, um domingo: fazia um grande calor; as duas janelas estavam cerradas, mas sentia-se fora o sol faiscar nas vidraças, escaldar a pedra da varanda; havia o silêncio recolhido e sonolento de manhã de missa; uma vaga quebreira amolentava, trazia desejos de sestas, ou de sombras fofas debaixo de arvoredos, no campo, ao pé d’água; nas duas gaiolas, entre as bambinelas de cretone azulado, os canários dormiam; um zumbido monótono de moscas arrastava-se por cima da mesa, pousava no fundo das chávenas sobre o açúcar mal derretido, enchia toda a sala dum rumor dormente.
Jorge enrolou um cigarro, e muito repousado, muito fresco na sua camisa de chita, sem colete, o jaquetão de flanela azul aberto, os olhos no teto, pôs-se a pensar na sua jornada ao Alentejo. Era engenheiro de minas, no dia seguinte devia partir para Beja, para Évora, mais para o sul até São Domingos; e aquela jornada, em julho, contrariava-o como uma interrupção, afligia-o como uma injustiça. Que maçada por um verão daqueles! Ir dias e dias sacudido pelo chouto dum cavalo de aluguel, por esses descampados do Alentejo que não acabam nunca, cobertos dum restolho escuro, abafados num sol baço, onde os moscardos zumbem! Dormir nos montados, em quartos que cheiram a tijolo cozido, ouvindo em redor, na escuridão da noite tórrida, grunhir as varas dos porcos! A todo o momento sentir entrar pelas janelas, passar no ar o bafo quente das queimadas! E só!
Tinha estado até então no Ministério, em comissão. Era a primeira vez que se separava de Luísa; e perdia-se já em saudades daquela salinha, que ele mesmo ajudara a forrar de papel novo nas vésperas do seu casamento, e onde, depois das felicidades da noite, os seus almoços se prolongavam em tão suaves preguiças!
E cofiando a barba curta e fina, muito frisada, os seus olhos iam-se demorando, com uma ternura, naqueles móveis íntimos, que eram do tempo da mamã: o velho guarda-louça envidraçado, com as pratas muito tratadas a gesso-cré, resplandecendo decorativamente; o velho painel a óleo, tão querido, que vira desde pequeno, onde apenas se percebiam num fundo lascado os tons avermelhados de cobre dum bojo de caçarola e os rosados desbotados dum molho de rabanetes! Defronte, na outra parede, era o retrato de seu pai: estava vestido à moda de 1830, tinha a fisionomia redonda, o olho luzidio, o beiço sensual; e sobre a sua casaca abotoada reluzia a comenda de Nossa Senhora da Conceição. Fora um antigo empregado do Ministério da Fazenda, muito divertido, grande tocador de flauta. Nunca o conhecera, mas a mamã afirmava-lhe “que o retrato só lhe faltava falar”. Vivera sempre naquela casa com sua mãe. Chamava-se Isaura: era uma senhora alta, de nariz afilado, muito apreensiva; bebia ao jantar água quente; e ao voltar um dia do lausperene da Graça, morrera de repente, sem um ai!
Fisicamente Jorge nunca se parecera com ela. Fora sempre robusto, de hábitos viris. Tinha os dentes admiráveis de seu pai, os seus ombros fortes.
De sua mãe herdara a placidez, o gênio manso. Quando era estudante na Politécnica, às 8 horas recolhia-se, acendia o seu candeeiro de latão, abria os seus compêndios. Não frequentava botequins, nem fazia noitadas. Só duas vezes por semana, regularmente, ia ver uma rapariguita costureira, a Eufrásia, que vivia ao Borratém, e nos dias em que o Brasileiro, o seu homem, ia jogar o boston ao club, recebia Jorge com grandes cautelas e palavras muito exaltadas; era enjeitada, e no seu corpinho fino e magro havia sempre o cheiro relentado duma pontinha de febre. Jorge achava-a romanesca, e censurava-lho. Ele nunca fora sentimental: os seus condiscípulos, que liam Alfred de Musset suspirando e desejavam ter amado Margarida Gautier, chamavam-lhe proseirão, burguês: Jorge ria; não lhe faltava um botão nas camisas, era muito escarolado, admirava Luís Figuier, Bastiat e Castilho, tinha horror a dívidas e sentia-se feliz.
Quando sua mãe morreu, porém, começou a achar-se só: era no inverno, e o seu quarto nas traseiras da casa, ao sul, um pouco desamparado recebia as rajadas do vento na sua prolongação uivada e triste; sobretudo à noite, quando estava debruçado sobre o compêndio, os pés no capacho, vinham-lhe melancolias lânguidas; estirava os braços, com o peito cheio dum desejo; quereria enlaçar uma cinta fina e doce, ouvir na casa o frou-frou dum vestido! Decidiu casar. Conheceu Luísa, no verão, à noite, no Passeio. Apaixonou-se pelos seus cabelos louros, pela sua maneira de andar, pelos seus olhos castanhos muito grandes. No inverno seguinte foi despachado, e casou.
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