É muito instruído para ter ideias tão...

Hesitou, procurou o adjetivo. Juliana pôs-se-lhe diante com uma bandeja, onde um macaco de prata se agachava comicamente, sob um vasto guarda-sol eriçado de palitos. Tomou um, curvou-se, e concluiu:

– ... tão anticivilizadoras.

– Pois está enganado, conselheiro, tenho-as – afirmou Jorge. – São as minhas ideias. E aqui tem, se em lugar de se tratar dum final de ato, fosse um caso da vida real, se o Ernesto viesse dizer-me: sabes, encontrei minha mulher...

– Oh Jorge! – disseram, repreensivamente.

– ... Bem, suponhamos, se ele mo viesse dizer, eu respondia-lhe o mesmo. Dou a minha palavra de honra, que lhe respondia o mesmo: mata-a!

Protestaram. Chamaram-lhe tigre, Otelo, Barba-Azul. Ele ria, enchendo muito sossegadamente o seu cachimbo.

Luísa bordava, calada: a luz do candeeiro, abatida pelo abat-jour, dava aos seus cabelos tons de um louro quente, resvalava sobre a sua testa branca como sobre um marfim muito polido.

– Que dizes tu a isto? – disse-lhe dona Felicidade.

Ela ergueu o rosto, risonha, encolheu os ombros...

E o conselheiro logo:

– A senhora dona Luísa diz com orgulho o que dizem as verdadeiras mães de família:

Impurezas do mundo não me roçam

Nem a fímbria da túnica sequer.

– Ora muito boas noites – disse, à porta, uma voz grossa.

Voltaram-se.

– Ó Sebastião! Ó senhor Sebastião! Ó Sebastiarrão!

Era ele, Sebastião, o grande Sebastião, o Sebastiarrão, Sebastião tronco de árvore – o íntimo, o camarada, o inseparável de Jorge, desde o latim, na aula de frei Libório, aos Paulistas.

Era um homem baixo e grosso, todo vestido de preto, com um chapéu mole desabado na mão. Começava a perder um pouco na frente os seus cabelos castanhos e finos. Tinha a pele muito branca, a barba alourada e curta.

Veio sentar-se ao pé de Luísa.

– Então donde vem? donde vem?

Vinha do Price. Rira muito com os palhaços. Houvera a brincadeira da pipa.

O seu rosto, em plena luz, tinha uma expressão honesta, simples, aberta: os olhos pequenos, azuis dum azul-claro, duma suavidade séria, adoçavam-se muito quando sorria; e os beiços escarlates, sem películas secas, os dentes luzidios, revelavam uma vida saudável e hábitos castos. Falava devagar, baixo, como se tivesse medo de se manifestar ou de fatigar. Juliana trouxera-lhe a sua chávena, e remexendo o açúcar com a colher direita, os olhos ainda a rir, um sorriso bom:

– A pipa tem muita graça. Muita graça!

Sorveu um gole de chá e depois dum momento:

– E tu, maroto, sempre partes amanhã? Não há umas tentaçõezinhas de ir por aí fora com ele, minha cara amiga?

Luísa sorriu. Tomara ela! Quem dera! Mas era uma jornada tão incômoda! Depois a casa não podia ficar só, não havia que fiar em criados...

– Está claro, está claro – disse ele.

Jorge, então, que abrira a porta do escritório, chamou-o:

– Ó Sebastião! Fazes favor?

Ele foi logo com o seu andar pesado, o largo dorso curvado: as abas do seu casaco malfeito tinham um comprimento eclesiástico.

Entraram para o escritório.

Era uma saleta pequena, com uma estante alta e envidraçada, tendo em cima a estatueta de gesso, empoeirada e velha, duma bacante em delírio. A mesa, com um antigo tinteiro de prata que fora de seu avô, estava ao pé da janela: uma coleção empilhada de Diários do Governo branquejava a um canto: por cima da cadeira de marroquim escuro, pendia, num caixilho preto, uma larga fotografia de Jorge: e, sobre o quadro, duas espadas encruzadas reluziam. Uma porta, no fundo coberta com um reposteiro de baeta escarlate, abria para o patamar.

– Sabes quem esteve aí de tarde? – disse logo Jorge, acendendo o cachimbo. – Aquela desavergonhada da Leopoldina! Que te parece, hein?

– E entrou? – perguntou Sebastião, baixo, correndo por dentro o pesado reposteiro de fazenda listrada.

– Entrou, sentou-se, esteve, demorou-se! Fez o que quis! A Leopoldina, a Pão e queijo!

E arremessando o fósforo violentamente:

– Quando penso que aquela desavergonhada vem a minha casa! Uma criatura que tem mais amantes que camisas, que anda pelo Dafundo em troças; que passeava nos bailes, este ano, de dominó, com um tenor! A mulher do Zagalão, um devasso que falsificou uma letra!

E quase ao ouvido de Sebastião:

– Uma mulher que dormiu com o Mendonça dos calos! Aquele sebento do Mendonça dos calos!

Teve um gesto furioso, exclamou:

– E vem aqui; senta-se nas minhas cadeiras, abraça minha mulher! respira o meu ar!... Palavra de honra, Sebastião, se a pilho – procurou mentalmente, com o olhar aceso, um castigo suficiente – dou-lhe açoites!

Sebastião disse devagar:

– E o pior é a vizinhança.

– Está claro que é – exclamou Jorge. – Toda essa gente aí pela rua abaixo sabe quem ela é! Sabem-lhe os amantes, sabem-lhe os sítios. É a Pão e queijo! Todo o mundo conhece a Pão e queijo.

– Má vizinhança – disse Sebastião.

– De tremer.

Mas então! Estava acostumado à casa; era sua, tinha-a arranjado; era uma economia...

– Senão! Não parava aqui um dia!

Era um horror de rua! Pequena, estreita, acavalados uns nos outros! Uma vizinhança a postos, ávida de mexericos! Qualquer bagatela, o trotar duma tipoia, e aparecia por trás de cada vidro um par de olhos repolhudos a cocar! E era logo um badalar de línguas por aí abaixo, e conciliábulos, e opiniões formadas! Fulano é indecente, fulano é bêbedo!

– É o diabo! – disse Sebastião.

– A Luísa é um anjo, coitada – dizia Jorge, passeando pela saleta – mas tem coisas em que é criança! Não vê o mal. É muito boa; deixa-se ir. Com este caso da Leopoldina, por exemplo; foram criadas de pequenas! eram amigas; não tem coragem agora para a pôr fora. É acanhamento, é bondade. Ele compreende-se! Mas enfim, as leis da vida têm as suas exigências!...

E depois duma pausa:

– Por isso, Sebastião, enquanto eu estiver fora, se te constar que a Leopoldina vem por cá, avisa a Luísa! Porque ela é assim: esquece-se, não reflexiona. É necessário alguém que a advirta, que lhe diga: “Alto lá, isso não pode ser!” Que então cai logo em si, e é a primeira!... Vens por aí, fazes-lhe companhia, fazes-lhe música, e se vires que a Leopoldina aparece ao largo, tu logo: “Minha rica senhora, cuidado, olhe que isso não!” Que ela, sentindo-se apoiada, tem decisão.