Sebastião, o seu íntimo, o bom Sebastião, o Sebastiarrão, tinha dito, com uma oscilação grave da cabeça, esfregando vagarosamente as mãos:
– Casou no ar! casou um bocado no ar!
Mas Luísa, a Luisinha, saiu muito boa dona de casa: tinha cuidados muito simpáticos nos seus arranjos; era asseada, alegre como um passarinho, como um passarinho amiga do ninho e das carícias do macho: e aquele serzinho louro e meigo veio dar à sua casa um encanto sério.
– É um anjinho cheio de dignidade! – dizia então Sebastião, o bom Sebastião, com a sua voz profunda de basso.
Estavam casados havia três anos. Que bom que tinha sido! Ele próprio melhorara; achava-se mais inteligente, mais alegre... E, recordando aquela existência fácil e doce, soprava o fumo do charuto, a perna traçada, a alma dilatada, sentindo-se tão bem na vida como no seu jaquetão de flanela!
– Ah! – fez Luísa de repente, toda admirada para o jornal, sorrindo.
– Que é?
– É o primo Basílio que chega!
E leu alto, logo:
“Deve chegar por estes dias a Lisboa, vindo de Bordéus, o senhor Basílio de Brito, bem conhecido da nossa sociedade. S. Exa. que, como é sabido, tinha partido para o Brasil, onde se diz reconstituíra a sua fortuna com um honrado trabalho, anda viajando pela Europa desde o começo do ano passado. A sua volta à capital é um verdadeiro júbilo para os amigos de S. Exa. que são numerosos”.
– E são! – disse Luísa, muito convencida.
– Estimo, coitado! – fez Jorge, fumando, anediando a barba com a palma da mão. – E vem com fortuna, hein?
– Parece.
Olhou os anúncios, bebeu um gole de chá, levantou-se, foi abrir uma das portadas da janela.
– Oh Jorge, que calor que lá vai fora, santo Deus! – Batia as pálpebras sob a radiação da luz crua e branca.
A sala, nas traseiras da casa, dava para um terreno vago, cercado dum tabuado baixo, cheio de ervas altas e duma vegetação de acaso, aqui, ali, naquela verdura crestada do verão, largas pedras faiscavam, batidas do sol perpendicular; e uma velha figueira brava, isolada no meio do terreno, estendia a sua grossa folhagem imóvel, que, na brancura da luz, tinha os tons escuros do bronze. Para além eram as traseiras doutras casas, com varandas, roupas secando em canas, muros brancos de quintais, árvores esguias. Uma vaga poeira embaciava, tornava espesso o ar luminoso.
– Caem os pássaros! – disse ela cerrando a janela. – Olha tu pelo Alentejo, agora!
Veio encostar-se à voltaire de Jorge, passou-lhe lentamente a mão sobre o cabelo preto e anelado. Jorge olhou-a, triste já da separação: os dois primeiros botões do seu roupão estavam desapertados; via-se o começo do peito de uma brancura muito tenra, a rendinha da camisa: muito castamente Jorge abotoou-lhos.
– E os meus coletes brancos? – disse.
– Devem estar prontos.
Para se certificar chamou Juliana.
Houve um ruído domingueiro de saias engomadas, Juliana entrou arranjando nervosamente o colar e o broche. Devia ter quarenta anos, era muitíssimo magra. As feições, miúdas, espremidas, tinham a amarelidão de tons baços das doenças de coração. Os olhos grandes, encovados, rolavam numa inquietação, numa curiosidade, raiados de sangue entre pálpebras sempre debruadas de vermelho. Usava uma cuia de retrós imitando tranças, que lhe fazia a cabeça enorme. Tinha um tic nas asas do nariz. E o vestido chato sobre o peito, curto da roda, tufado pela goma das saias – mostrava um pé pequeno, bonito, muito apertado em botinas de duraque com ponteiras de verniz.
Os coletes não estavam prontos, disse com uma voz muito lisboeta, não tivera tempo de os meter em goma.
– Tanto lhe recomendei, Juliana! – disse Luísa. – Bem, vá. Veja como se arranja! Os coletes hão de ficar à noite na mala!
E apenas ela saiu:
– Estou a tomar ódio a esta criatura, Jorge!
Há dois meses que a tinha em casa, e não se pudera acostumar à sua fealdade, aos seus trejeitos, à maneira aflautada de dizer chapieu, tisoiras, de arrastar um pouco os rr, ao ruído dos seus tacões que tinham laminazinhas de metal: ao domingo, a cuia, o pretensioso do pé, as luvas de pelica preta arrepiavam-lhe os nervos.
– Que antipática!
Jorge ria:
– Coitada, é uma pobre de Cristo! – E depois que engomadeira admirável! No ministério examinavam com espanto os seus peitilhos! – O Julião diz bem, eu não ando engomado, ando esmaltado! Não é simpática, não, mas é asseada, é apropositada...
E levantando-se, com as mãos nos bolsos das suas largas calças, de flanela:
– E, enfim, minha filha, a maneira como ela se portou na doença da tia Virgínia... Foi um anjo para ela! – Repetiu com solenidade: – De dia, de noite, foi um anjo para ela! Estamos-lhe em dívida, minha filha! – E começou a enrolar um cigarro, com a fisionomia muito séria.
Luísa, calada, fazia saltar com a pontinha da chinela a orla do roupão; e examinando fixamente as unhas, a testa um pouco franzida, pôs-se a dizer:
– Mas enfim, se eu embirro com ela, não me importa, posso bem mandá-la embora.
Jorge parou, e raspando um fósforo na sola do sapato:
– Se eu consentir, minha rica. É que é uma questão de gratidão, para mim!
Ficaram calados. O cuco cantou meio-dia.
– Bem, vou à vida – disse Jorge. Chegou-se ao pé dela, tomou-lhe a cabeça entre as mãos.
– Viborazinha! – murmurou, fitando-a muito meigamente.
Ela riu. Ergueu para ele os seus magníficos olhos castanhos, luminosos e meigos. Jorge enterneceu-se, pôs-lhe sobre as pálpebras dois beijos chilreados. E torcendo-lhe o beicinho, com uma meiguice:
– Queres alguma coisa de fora, amor?
Que não viesse muito tarde.
Ia deixar uns bilhetes, ia numa tipoia, era um pulo...
E saiu, feliz, cantando com a sua boa voz de barítono:
Dio del oro,
Del mundo signor.
Lalara,lara.
Luísa espreguiçou-se. Que seca ter de se ir vestir! Desejaria estar numa banheira de mármore cor-de-rosa, em água tépida, perfumada, e adormecer! Ou numa rede de seda, com as janelas cerradas, embalar-se, ouvindo música! Sacudiu a chinelinha: esteve a olhar muito amorosamente o seu pé pequeno, branco como leite, com veias azuis, pensando numa infinidade de coisinhas: – em meias de seda que queria comprar, no farnel que faria a Jorge para a jornada, em três guardanapos que a lavadeira perdera...
Tornou a espreguiçar-se. E, saltando na ponta do pé descalço, foi buscar ao aparador por detrás duma compota um livro um pouco enxovalhado, veio estender-se na voltaire, quase deitada, e, com o gesto acariciador e amoroso dos dedos sobre a orelha, começou a ler, toda interessada.
Era a Dama das camélias.
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