Assobiava baixo; e parecia todo ocupado em conchegar um botão de amarílis aninhado entre a sua folhagem luzidia, como um pequenino coração assustado.
Luísa ia passando o seu medalhão de ouro numa longa fita de veludo preto: tinha uma tremura nas mãos, estava vermelha.
– O calor tem-lhes feito mal – disse.
Jorge não respondeu. Assobiou mais alto, foi à outra janela, bateu com os dedos nas folhas elásticas duma makoama de tons verdes e sanguíneos e, alargando impacientemente o colarinho como um homem sufocado:
– Ouve lá, é necessário que deixes por uma vez de receber essa criatura. É necessário acabar por uma vez!
Luísa fez-se escarlate.
– É por causa de ti! é por causa dos vizinhos! é por causa da decência!
– Mas foi a Juliana... – balbuciou Luísa.
– Mandasse-a sair outra vez. Que estavas fora! que estavas na China. Que estavas doente!
Parou, com um tom desconsolado, abrindo os braços:
– Minha rica filha, é que todo o mundo a conhece. É a Quebrais! É a Pão e queijo! É uma vergonha!
Citava-lhe os seus amantes, exasperado: o Carlos Viegas, o magro, de bigode caído, que escrevia comédias para o ginásio! O Santos Madeira, o picado das bexigas, com uma gaforinha! O Melchior Vadio, um gingão desossado, com um olhar de carneiro morto, sempre a fumar numa enorme boquilha! O Pedro Câmara, o bonito! O Mendonça dos calos! Tutti quanti!
E, encolhendo os ombros, exasperado:
– Como se eu não percebesse que ela esteve aqui! Só pelo cheiro! Este horrível cheiro de feno! Vocês foram criadas juntas, etc., tudo isso é muito bom. Hás de desculpar, mas se a encontro na escada, corro-a. Corro-a!
Parou um momento, e comovido:
– Ora, vamos, Luísa, confessa. Tenho ou não razão?
Luísa punha os brincos, ao espelho, atarantada:
– Tens – disse.
– Ah! bem!
E saiu, furioso.
Luísa ficou imóvel. Uma lagrimazinha redonda, clara, rolava-lhe pela asa do nariz. Assoou-se muito doloridamente. Aquela Juliana. Aquela bisbilhoteira! De má! Para fazer cizânia!
Veio-lhe então uma cólera. Foi ao quarto dos engomados, atirou com a porta:
– Para que foi você dizer quem esteve ou quem deixou de estar?
Juliana, muito surpreendida, pousou o ferro:
– Pensei que não era segredo, minha senhora.
– Está claro que não! Tola! quem lhe diz que era segredo? E para que mandou entrar? Não lhe tenho dito muitas vezes que não recebo a senhora dona Leopoldina?
– A senhora nunca me disse nada – replicou, toda ofendida cheia de verdade.
– Mente! Cale-se!
Voltou-lhe as costas; veio para o quarto, muito nervosa, foi encostar-se à vidraça.
O sol desaparecera; na rua estreita havia uma sombra igual, de tarde sem vento: pelas casas, de uma edificação velha, escuras, estavam abertas as varandas onde em vasos vermelhos se mirrava alguma velha planta miserável, manjericão ou cravo; ouvia-se, no teclado melancólico dum piano, a Oração de uma virgem, tocada por alguma menina, no sentimentalismo vadio do domingo; e na sua janela, defronte, as quatro filhas do Teixeira Azevedo, magrinhas, com os cabelos muito riçados, as olheiras pisadas, passavam a sua tarde de dia santo olhando para a rua, para o ar, para as janelas vizinhas, cochichando se viam passar um homem – ou debruçadas, com uma atenção idiota, faziam pingar saliva sobre as pedras da calçada.
Jorge tinha razão, coitado! pensava Luísa. Mas, também, que podia ela fazer? Já não ia à casa de Leopoldina, tirara o seu retrato do álbum da sala, vira-se obrigada a confessar-lhe a repugnância de Jorge, tinham chorado ambas, até! Coitada! Só a recebia de longe a longe, uma raridade, um momento! E enfim, depois dela estar na sala, não a havia de ir empurrar pela escada abaixo!
Um homem grosso, de pernas tortas, curvado sob um realejo, apareceu então ao alto da rua; as suas barbas pretas tinham um aspecto feroz; parou, pôs-se a voltear a manivela, levantando em redor, para as janelas, um sorriso triste de dentes brancos, e a Casta Diva! com uma sonoridade metálica e seca, muito tremida, espalhou-se pela rua.
Gertrudes, a criada e a concubina do doutor de matemática, veio encostar logo aos caixilhos estreitos da janela a sua vasta face trigueira de quarentona farta e estabelecida; adiante, na sacada aberta dum segundo andar, debruçou-se a figura do Cunha Rosado, magro e chupado, com um boné de borla, o aspecto desconsolado do doente de intestinos, conchegando com as mãos transparentes o robe de chambre ao ventre. Outras faces enfastiadas mostraram-se entre as bambinelas de cassa.
Na rua, a estanqueira chegou-se à porta, vestida de luto, estendendo o seu carão viúvo, os braços cruzados sobre o xale tingido de preto, esguia nas longas saias escoadas. Da loja, por baixo da casa Azevedo, veio a carvoeira, enorme de gravidez bestial, o cabelo esguedelhado em repas secas, a cara oleosa e enfarruscada, com três pequenos meio nus, quase negros, chorões e hirsutos, que se lhe penduravam da saia de chita. E o Paula, com loja de trastes velhos, adiantou-se até o meio da rua; a pala de verniz do seu boné de pano preto nunca se erguia de cima dos olhos; escondia sempre as mãos, como para ser mais reservado, por trás das costas, debaixo das abas do seu casaco de cotim branco; o calcanhar sujo da meia saía-lhe para fora da chinela bordada a miçanga; e fazia roncar o seu pigarro crônico de um modo despeitado. Detestava os reis e os padres. O estado das coisas públicas enfurecia-o. Assobiava frequentemente a Maria da fonte, e mostrava-se nas suas palavras, nas suas atitudes, um patriota exasperado.
O homem do realejo tirou o seu largo chapéu desabado e, tocando sempre, ia-o estendendo em redor para as janelas, com um olhar necessitado. As Azevedos tinham logo fechado violentamente a vidraça. A carvoeira deu-lhe uma moeda de cobre; mas interrogou-o; quis decerto saber de que país era, por que estradas tinha vindo e quantas peças tinha o instrumento.
Gente endomingada começava a recolher, com um ar derreado do longo passeio, as botas empoeiradas; mulheres de xale, vindas das hortas, traziam ao colo as crianças adormecidas da caminhada e do calor; velhos plácidos, de calça branca, o chapéu na mão, gozavam a frescura, dando um giro no bairro; pelas janelas, bocejava-se; o céu tomava uma cor azulada e polida, como uma porcelana; um sino repicava a distância o fim dalguma festa de igreja; e o domingo terminava, com uma serenidade cansada e triste.
– Luísa – disse a voz de Jorge.
Ela voltou-se, com um vago – hein?
– Vamos jantar, filha; são sete horas.
No meio do quarto, tomou-a pela cinta, e falando-lhe baixo, junto à face:
– Tu zangaste-te há bocado?
– Não! Tu tens razão. Conheço que tens razão.
– Ah! – fez ele com um tom vitorioso, muito satisfeito. – Está claro,
Quem melhor conselheiro e bom amigo
Que o marido que a alma me escolheu?
E com uma ternura grave:
– Minha querida filha, esta nossa casinha é tão honesta, que é uma dor de alma ver entrar essa mulher aqui, com o cheiro do feno, do cigarro, e do resto!... Mà, di questo no parlaremo più, o donna mia! À sopa!
II
Aos domingos à noite havia em casa de Jorge uma pequena reunião, uma cavaqueira, na sala, em redor do velho candeeiro de porcelana cor-de-rosa. Vinham apenas os íntimos. “O Engenheiro”, como se dizia na rua, vivia muito ao seu canto, sem visitas. Tomava-se chá, palrava-se.
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