Entre as bambinelas, em mesas redondas de pé-de-galo, plantas espessas, begônias, macoimas, dobravam decorativamente a sua folhagem rica e forte, em vasos de barro vermelho vidrado.

Aqueles arranjos confortáveis lembraram decerto a Leopoldina felicidades tranquilas. Pôs-se a dizer devagar, olhando em roda:

– E tu, sempre muito apaixonada por teu marido, hein? Fazes bem, filha, tu é que fazes bem!

Foi defronte do toucador, aplicar pó de arroz no pescoço, nas faces:

– Tu é que fazes bem! – repetia. – Mas vá lá uma mulher prender-se a um homem como o meu!

Sentou-se na causeuse com um ar muito abandonado; vieram as queixas habituais sobre seu marido: era tão grosseiro! era tão egoísta!

– Acreditarás que há tempos para cá, se não estou em casa às quatro horas, não espera, põe-se à mesa, janta, deixa-me os restos! E depois desleixado, enxovalhado, sempre a cuspir nas esteiras... O quarto dele – nós temos dois quartos, como tu sabes – é um chiqueiro!

Luísa disse com severidade:

– Que horror! A culpa também é tua.

– Minha! – e endireitou-se, luziam-lhe os olhos, mais largos, mais negros. – Não me faltava mais nada senão ocupar-me do quarto do homem!

Ah! era muito desgraçada, era a mulher mais desgraçada que havia no mundo!

– Nem ciúmes tem, o bruto!

Mas Juliana entrou, tossiu, e arranjando ainda o colar e o broche:

– A senhora sempre quer que engome os coletes todos?

– Todos, já lhe disse. Hão de ficar à noite na mala antes de se ir deitar.

– Que mala? Quem parte? – perguntou Leopoldina.

– O Jorge. Vai às minas, ao Alentejo.

– Então estás só, posso vir ver-te! Ainda bem!

E sentou-se logo ao pé dela, com um olhar que se fizera doce.

– É que tenho tanto que te contar! Se tu soubesses, filha!

– O quê? Outra paixão? – fez Luísa rindo.

A face de Leopoldina tornou-se grave.

Não era pra rir. Estava de todo! Era por isso até que tinha vindo. Sentira-se tão só em casa, tão nervosa! – Vou até a Luísa, vou palrar um bocado!

E com voz mais baixa, quase solene:

– Desta vez é sério, Luísa! – Deu os detalhes. Era um rapaz alto, louro, lindo! E que talento! É poeta! – Dizia a palavra com devoção, prolongando o som das sílabas. – É poeta!

Desapertou devagar dois botões do corpete, tirou do seio um papel dobrado. Eram versos.

E muito chegada para Luísa, com as narinas dilatadas pela delícia da sensação, leu baixo, com orgulho, com pompa:

         A TI

        Farol da Guia, 5 de junho.

Quando cismo à hora do poente

Sobre os rochedos onde brame o mar...

Era uma elegia. O rapaz contava, em quadras, as longas contemplações em que a via a ela, Leopoldina, visão radiosa que deslizas leve, nas águas dormentes, nas vermelhidões do ocaso, na brancura das espumas. Era uma composição delambida, dum sentimentalismo reles, com um ar tísico, muito lisboeta, cheia de versos errados. E terminando dizia-lhe que não era “nos esplendores das salas” ou nos “bailes febricitantes” que gostava de a ver: era ali, naqueles rochedos,

Onde todos os dias ao sol posto

Eu vejo adormecer o mar gigante.

– Que bonito, hein!

Ficaram caladas, com uma comoçãozinha.

Leopoldina, com os olhos perturbados, repetia a data, amorosamente.

– Farol da Guia, 5 de junho!

Mas o relógio do quarto deu quatro horas. Leopoldina ergueu-se logo, atarantada, meteu o poema no seio.

Tinha de se ir já! Fazia-se tarde, senão o outro punha-se à mesa. Tinha um ruivo assado para o jantar. E peixe frio era a coisa mais estúpida!

– Adeus. Até breve, não? – E agora que Jorge ia para fora, havia de vir muito. – Adeus. Então a francesa, rua do Ouro, por cima do estanque?

Luísa foi com ela até o patamar. Leopoldina já ao fundo da escada ainda parou, gritou:

– Sempre te parece que guarneça o vestido de azul, hein?

Luísa debruçou-se sobre o corrimão:

– Eu assim fiz, é o melhor.

– Adeus! Rua do Ouro, por cima do estanque.

– Sim. Rua do Ouro. Adeus. – E com um gritinho: – Porta à direita, madame François.

Jorge voltou às cinco horas, e logo da porta do quarto, pondo a bengala a um canto:

– Já sei que tiveste cá uma visita.

Luísa voltou-se, um pouco corada. Estava diante do toucador já penteada, com um vestido de linho branco, guarnecido de rendas.

Era verdade, tinha vindo a Leopoldina. Juliana mandara-a entrar... Ficara mais contrariada! Era por causa da adresse da francesa dos chapéus. Tinha-se demorado dez minutos.

– Quem te disse?

– Foi a Juliana: que a senhora dona Leopoldina tinha estado toda a tarde.

– Toda a tarde! que tolice, esteve dez minutos, se tanto!

Jorge tirava as luvas, calado. Chegou-se à janela, pôs-se a sacudir as duras folhas duma begônia malhada dum vermelho doente, com uma baba prateada.