M. Stoddart, um dos editores e sócio da “Lippincott”, se encontrava em Londres para coletar e contratar pequenos romances e contos para serem publicados em sua revista literária. Na ocasião conheceu pessoalmente Wilde e lhe encomendou uma obra que retratasse o pensamento do Esteticismo. Segundo o biógrafo Philippe Julian, em sua obra “Oscar Wilde”, Wilde desenvolveu a trama de “O Retrato de Dorian Gray” a partir de um acontecimento verdadeiro ocorrido com o escritor alguns anos antes: por volta de 1884, Oscar Wilde foi convidado ao estúdio do pintor Basil Ward, onde o mesmo estava finalizando uma pintura de um jovem modelo. Quando a obra foi finalmente completada, Wilde teria dito: “é uma pena que tal gloriosa criatura um dia envelheça”. O pintor concordou com sua opinião, respondendo “seria maravilhoso se ele pudesse permanecer exatamente como ele é; a imagem do quadro que deveria ganhar as marcas do tempo”. Valendo-se desse acontecimento, Wilde desenvolveu um pequeno romance que retratava alguns dos conceitos desenvolvidos pelo movimento e apresentava uma história unida aos conceitos da vida dupla, publicado na edição de 20 de junho de 1890.
Deste modo, o Esteticismo é um dos temas mais fortes no romance, bem como a visão de uma vida dupla empreendida pelo personagem principal, Dorian Gray: apesar de ser um adepto do hedonismo, Gray mantém certo conservadorismo externo diante da sociedade vitoriana da qual faz parte, ao mesmo tempo em que desfruta de uma terrível aproximação das sensações apresentadas por sua vida dupla, da qual não consegue se afastar. Gray, por exemplo, comparece às reuniões da sociedade londrina horas após ter cometido um dos seus inúmeros assassinatos.
Esta duplicidade e indulgência são mais evidentes na descrição das inúmeras visitas de Gray aos bairros empobrecidos das classes baixas de Londres, demonstrando as diferenças e os conflitos existentes em uma cidade em constante transformação econômica e social. Através de lorde Henry Wotton, Wilde apresenta uma visão da burguesia inglesa sobre as classes menos favorecidas “o crime pertence exclusivamente às ordens mais baixas, e imagino que o crime represente para elas o mesmo que a arte é para nós, simplesmente um método de busca de sensações extraordinárias”. A partir disso, Wilde demonstra que Gray é a síntese entre o criminoso e o esteta, o ponto de encontro entre as várias classes sociais que coexistem na Inglaterra dos finais do século XIX. Este tema acaba por ser recorrente em toda a literatura gótica ao longo do século XIX, da qual “O Retrato de Dorian Gray” é o seu último representante.
De certo modo, a trama desenvolvida por Wilde acaba por se referir a outro romance contemporâneo seu, de autoria do escritor escocês Robert Louis Stevenson, “O Estranho Caso do Doutor Jekyll e do Senhor Hyde”: o que nesse último é demonstrado como sendo uma divisão intrínseca à personalidade humana, e com isso a busca primordial dos ensaios científicos do personagem Henry Jekyll, em “Dorian Gray”, Wilde, apresenta através de Gray, como essas duas partes divergentes de sua personalidade tentam coexistir. Gray chega a comentar que apesar das aparências, cada um de nós possui em si mesmo, um pouco do Céu e do Inferno. Devido a essa observação e outras apresentadas ao longo do romance, Wilde foi acusado de ser um mero compilador de estilos e conteúdos, empregando livremente opiniões, personagens e características de outros autores, como Honoré de Balzac, Robert Louis Stevenson, Edgard Allan Poe e Arthur Conan Doyle.
O romance foi publicado no ano seguinte, em abril de 1891, pela casa editorial inglesa “Ward, Lock and Bowden Company”; nesta versão, Wilde revisou o romance, ampliando os treze capítulos originais reorganizando-os em vinte capítulos, em virtude de uma série de exigências que os editores ingleses realizaram no sentido de se suavizar a trama, sem contudo, perder o foco principal da história: Wilde inseriu quatro novos capítulos – os capítulos 3, 5, 15 e 18 da versão de 1891 – e dividiu o capítulo 13 da versão de 1890, em dois, tornando-se os capítulos 19 e 20 da edição de 1891.
As mudanças mais profundas foram no sentido de se “abrandar” a influência negativa de lorde Henry sobre Gray, bem como alguns aspectos das relações entre os personagens ao longo da trama. Wilde também tentou moderar as relações entre certos personagens, principalmente o relacionamento entre o pintor Basil Hallward e o personagem de Dorian Gray. Mais tarde, durante as sessões do julgamento de 1895 que o levariam à prisão, Wilde testemunhou que grandes partes das mudanças foram empreendidas após o autor ter recebido uma série de correspondências encaminhadas por seu antigo professor de Estética da Universidade de Oxford e seu amigo, Walter Pater.
Algumas dessas alterações, contudo, ocorreram principalmente por iniciativa de Wilde e outras por influência de seus editores, tanto o norte-americano quanto o inglês. Por exemplo, na versão inicial de 1890, entre as exclusões de pré-publicação que Stoddart e seus editores introduziram no texto do manuscrito original de Wilde encontram-se passagens aludindo à homossexualidade e ao desejo homossexual; todas as referências ao título do livro fictício “Le Secret de Raoul” e de seu autor, Catulle Sarrazin (substituídos na versão final apenas por “o livro amarelo”); e todas as referências ao termo “amante” para os amores de Gray, Sibyl Vane e Hetty Merton.
As alterações desenvolvidas por Wilde em sua segunda versão também pretenderam “remover o brilho de Gray como personagem”, apresentando maiores detalhes sobre seu passado e suas origens e tornando mais crível a transformação psicológica do personagem ao longo da história. No capítulo 3 da nova versão, Wilde apresenta a origem de Gray, demonstrando que o mesmo era fruto da fuga e do casamento da filha de um arrogante nobre inglês, que manipulara a sociedade no sentido de acabar com este relacionamento. O avô de Gray teria contratado uma pessoa para desafiar o genro em um duelo e dessa contenda resultou a morte deste último; do desgosto da perda do marido, a mãe de Gray viria falecer logo depois, ficando o menino sob a responsabilidade do avô.
No novo capítulo 5, Wilde apresenta a família de Sibyl Vane, demonstrando o quanto Gray estava envolvida com a infantil e pouco talentosa atriz londrina, e as preocupações de sua mãe com este relacionamento tão repentino e inconsequente; é apresentado também um novo personagem que não existia na versão de 1890, James Vane, irmão de Sibyl: Wilde o introduz na história para balancear a trama, enfatizando as diferenças entre as personalidades de Gray e James Vane, dando uma visão tipicamente vitoriana à história em uma tentativa de diminuir a controvérsia em torno do livro.
Além dessas mudanças, Wilde apresenta um “Prefácio” à obra, um manifesto à Estética, composto por 24 aforismos, sendo sua resposta pessoal aos críticos ingleses que consideravam a versão de 1890 um conto escandaloso e repleto de imoralidades. Wilde e outros devotos à filosofia acreditavam que a arte possui um valor intrínseco, não possuindo outro propósito senão o de cultuar apenas a Beleza. Suas argumentações entraram em choque com a posição corrente da sociedade vitoriana, onde a arte não é apenas um meio de se propagar a moralidade, mas também um meio de reforçá-la. É notório o posicionamento de Wilde, apresentado através de um de seus personagens, ao declarar que “os livros que o mundo chama de imorais são aqueles que apresentam ao mundo as vergonhas de sua própria existência”. Dado o caráter inovador e provocador de seu “Prefácio” para a edição de 1891, apresentaremos este pequeno texto também nesta edição.
Os fatos e opiniões que Wilde apresenta em defesa de seu romance são exemplos de seus golpes severos à hipocrisia artística inglesa, que ele julgava pretensiosa e convencionalmente tediosa. Principalmente através de lorde Henry, Wilde apresenta seu posicionamento crítico quanto à sociedade vitoriana, amplamente desenvolvidos também em suas inúmeras peças teatrais:
“Um artista, meu caro senhor, não possui afinidade ética com tudo. A virtude e a fraqueza são para ele simplesmente o que as cores de uma paleta são para um pintor”.
“O público inglês não possui qualquer interesse em uma obra de arte até que lhe seja informado que esta mesma obra é imoral”.
“Não desejo ser um escritor popular. Isso seria bom demais para as massas”.
“O crítico deve educar o público; mas o artista deve educar o crítico”.
O lançamento de “O Retrato de Dorian Gray” fez com que seu autor se tornasse ainda mais admirado e famoso, no entanto, no seu apogeu literário, começaram a surgir os problemas pessoais, aliados aos seus posicionamentos audaciosos para a época, que desafiavam a moralidade da aristocracia inglesa.
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