Aos poucos, nossa visão foi se acostumando à penumbra e percebemos que não havia uma passagem direta para nos levar adiante, mas era possível escalar um lado da caverna, para um arco acima, que prometia um caminho mais acessível, no qual descobrimos ser a fonte da tênue luz. Com uma dificuldade considerável, ascendemos e atingimos uma outra passagem ainda mais iluminada, que nos levou a mais uma subida igual a anterior.
Após uma sucessão de escaladas, que somente nossa resolução nos permitira realizar, chegamos a uma ampla caverna com um teto em forma de arco, como um domo. Uma abertura no meio deixava entrar a luz do céu; porém a abertura estava coberta de arbustos e plantas que agiam como véu, obscurecendo o dia e concedendo ao ambiente um tom solene e religioso. Este, era espaçoso e quase circular, com um assento de pedra elevado do chão, do tamanho de um sofá grego. O único sinal de que houvera vida lá dentro era o esqueleto de um bode, branco como a neve, que provavelmente não percebera a abertura enquanto corria pela montanha acima e mergulhara de cabeça. Eras inteiras devem ter se passado desde essa catástrofe e o estrago que fora feito anteriormente foi reparado pelo crescimento da vegetação durante centenas de verões.
O resto da mobília da caverna consistia em pilhas de folhas, fragmentos de cortiça e uma substância branca e embaciada, como a parte inferior da folha verde que cobre os grãos do milho ainda não colhido. Estávamos cansados pelo nosso esforço até atingir aquele ponto e nos sentamos no sofá de pedra, enquanto o tilintar dos sinos das ovelhas, e o grito do jovem pastor, nos chegavam desde cima.
Ao final, meu amigo, que tinha em suas mãos algumas das folhas espalhadas ao nosso redor, exclamou: “Esta é a caverna de Sibila e estas folhas são sibilinas.”[6] Examinando-as, descobrimos que todas as folhas, as cortiças e os demais elementos continham palavras quase apagadas. O que mais nos surpreendeu foi que esses escritos estavam em várias línguas, algumas estranhas ao meu companheiro, como o antigo Chaldee e hieróglifos egípcios, velhos como as pirâmides. E, mais estranho ainda, havia palavras em idiomas modernos, como o inglês e o italiano. Não podíamos ler direito por causa da penumbra, mas pareciam ser profecias, relatos detalhados de eventos remotamente passados; nomes, agora famosos, mas de tempos modernos; e frequentes exultações e lamentos, de vitórias e derrotas, estavam traçados nas frágeis e escassas páginas. Aquela era, certamente, a Gruta de Sibila; não exatamente como Virgílio a descreve, pois todas aquelas terras foram revolvidas por erupções vulcânicas e terremotos, e a mudança não era maravilhosa, embora as marcas da destruição tenham sido ocultadas pelo tempo; e nós provavelmente devíamos a preservação daquelas folhas ao acidente que fechara a entrada da caverna e à rapidez do crescimento da vegetação, que pôde evitar a penetração da tempestade na sua única abertura. Fizemos uma seleção apressada de algumas folhas, cujos escritos poderíamos compreender; e então, carregando nosso tesouro, oferecemos nossos respeitos à caverna fendida e envolta em penumbra, e depois de muito esforço, conseguimos nos juntar aos nossos guias.
Durante nossa visita à Nápoles, frequentemente retornávamos à caverna, às vezes sozinhos, deslizando pelo mar iluminado de sol, sempre aumentando nosso tesouro. Desde aquele período, sempre que as circunstâncias mundanas não me furtavam o tempo ou que a atmosfera de minha mente não impedisse tais estudos, eu me dedicava a decifrar aquelas reminiscências sagradas. Seu significado, maravilhoso e eloquente, costumava compensar minhas dificuldades, aliviar minhas mágoas e excitar minha imaginação com voos audaciosos por entre a imensidão da natureza e a vastidão da mente humana. Por algum tempo, meu trabalho não foi solitário; mas esse tempo já passou; e, com a seleta e incomparável companhia de minhas contendas, sua recompensa mais cara me é perdida, também:
Di mie tenere frondi altro lavoro
Credea mostrarte; e qual fero pianeta
Ne’ nvidio insieme, o mio nobil tesoro?[7]
Eu apresento ao público minhas últimas descobertas das finas páginas sibilinas. Aleatórias e desconexas como estavam, fui obrigada a acrescer junções e modelar o trabalho de maneira consistente. Mas a essência permanece nas verdades contidas nestas rapsódias poéticas, assim como a intuição divina de que a donzela de Cumas obteve do Paraíso.
Tenho me perguntado, com frequência, sobre o tema desses versos e sobre a tradução para o inglês de um poeta latino. Às vezes, penso que essas rimas devem sua forma presente a mim, sua decifradora – já que eram caóticas e obscuras. Como se devêssemos dar a um outro artista fragmentos pintados que compõem uma cópia do mosaico “A Transfiguração de São Pedro”, de Rafael; ele as agruparia de outro modo, determinado pelo seu talento e pela sua imaginação particular. As folhas de Sibila de Cumas, indubitavelmente, sofreram distorções e seu interesse e excelência decaíram ao passar pelas minhas mãos. Minha única desculpa por transformá-las é que estavam ininteligíveis em sua condição primeira.
Meus trabalhos acalentaram longas horas de solidão e me isolaram de um mundo que transformou sua então benigna face para uma outra, fulgurante de imaginação e poder. Perguntarão meus leitores: como poderia eu encontrar conforto em uma narrativa de mudanças tristes e de lamentações? Esse é um dos mistérios de nossa natureza, que se apoderou por completo de mim e de cuja influência não posso escapar. Confesso que me emocionei com o desenrolar da trama; e que me deprimi, não, agonizei em algumas partes do recital, que eu transcrevi literalmente dos meus materiais. Porém, assim é a natureza humana, pois a agitação mental me era querida e a imaginação, pintora de tempestades e terremotos, ou ainda pior, de paixões humanas tempestuosas e carregadas de ruína, aliviou minhas tristezas reais e infinitos arrependimentos ao revestir as fictícias de idealização, que sofre a ferroada mortal da dor.
É-me difícil saber se essa escusa é necessária. Os méritos da minha adaptação e tradução devem determinar quão bem eu investi meu tempo e meus poderes imperfeitos ao dar forma e substância às frágeis e tênues Folhas de Sibila.
[1] Avernus: lago formado numa região vulcânica próxima ao Vesúsio e da caverna cumana, onde os antigos gregos e romanos acreditavam estar localizada a entrada para o Hades, ou o mundo subterrâneo dos mortos. A lenda ainda nos conta que sobre o lago nem as aves ousavam voar.
[2] Lazzeroni são membros das camadas sociais mais baixas de Nápoles. Nesse caso, trabalham como guias turísticos e criados
[3] Refere-se a duas passagens do Velho Testamento: no livro do Gênesis 8, v. 8 a 9: “Depois soltou uma pomba para ver se as águas já haviam secado sobre a face da terra. Mas a pomba, não achando terra seca onde pousar, voltou para a arca”; e no livro do Êxodos 14, v.22: “...e os israelitas entraram pelo meio do mar a pé enxuto, enquanto as águas lhes formavam uma muralha à direita e outra à esquerda.”
[4] A Sibila de Cumas recebia em sua caverna, Apolo, o deus dos presságios, dentre outros atributos.
[5] Do italiano: “Não, isso não é possível.”
[6] A Sibila de Cumas anotava em folhas o que Apolo lhe sussurrava sobre os fatos do futuro. Esta anotava as profecias em folhas soltas e às lançava no ar, sendo coletadas pelos sacerdotes de Apolo.
[7]7 “Pensei em mostrar-te outros trabalhos
De minhas frágeis folhas, mas qual cruel planeta
Nossa companhia inveja, Oh meu nobre tesouro?”
“Il Canzonieri”, Soneto CCCXXII, Francesco Petrarca
VOLUME I
CAPÍTULO I
SOU NATIVO de um recanto cercado pelos mares, uma terra obscurecida pelas nuvens que, quando a superfície do globo, com seu oceano sem praias e continentes perdidos, apresenta-se à minha mente, surge apenas como um grão desprezível no imenso todo; e ainda, quando medido na escala do poder mental, ultrapassa em muito países de maior extensão e de população mais numerosa.
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