Oh minha alma e meu espelho!

Moça — Oh miolo de coelho mal assado!

Velho — Quanto for mais avisado quem de amor vive penando, terá menos siso

amando, porque é mais namorado. Em conclusão: que amor não quer razão, nem

contrato, nem cautela, nem preito, nem condição, mas penar de coração sem

querela.

Moça — Onde há desses namorados? A terra está livre deles! Olho mau se meteu

neles! Namorados de cruzados, isso si!...

Velho — Senhora, eis-me eu aqui, que não sei senão amar. Oh meu rosto de alfeni!

Que em hora má eu vos vi.

Moça — Que velho tão sem sossego!

Velho — Que garridice me viste?

Moça — Mas dizei, que me sentiste, remelado, meio cego?

Velho — Mas de todo, por mui namorado modo, me tendes, minha senhora, já cego

de todo em todo.

Moça — Bem está, quando tal lodo se namora.

Velho — Quanto mais estais avessa, mais certo vos quero bem.

Moça — O vosso hortelão não vem? Quero-me ir, que estou com pressa.

Velho — Que formosa! Toda a minha horta é vossa.

Moça — Não quero tanta franqueza.

Velho — Não pra me serdes piedosa, porque, quanto mais graciosa, sois crueza.

Cortai tudo, é permitido, senhora, se sois servida. Seja a horta destruída, pois seu

dono é destruído.

Moça — Mana minha! Julgais que sou a daninha? Porque não posso esperar,

colherei alguma coisinha, somente por ir asinha e não tardar.

Velho — Colhei, rosa, dessas rosas! Minhas flores, colhei flores! Quisera que esses

amores foram perlas preciosas e de rubis o caminho por onde is, e a horta de ouro

tal, com lavores mui sutis, pois que Deus fazer-vos quis angelical. Ditoso é o jardim

que está em vosso poder. Podeis, senhora, fazer dele o que fazeis de mim.

Moça — Que folgura! Que pomar e que verdura! Que fonte tão esmerada!

3

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Velho — N’água olhai vossa figura: vereis minha sepultura ser chegada.

Canta a Moça

“Cual es la niña que coge las flores sino tiene amores?

Cogia la niña la rosa florida:

El hortelanico prendas le pedia sino tienes amores.”

Assim cantando, colheu a Moça da horta o que vinha buscar e, acabado, diz:

Eis aqui o que colhi; vede o que vos hei de dar.

Velho — Que me haveis vós de pagar, pois que me levais a mi? Oh coitado! Que

amor me tem entregado e em vosso poder me fino, como pássaro em mão dado de

um menino!

Moça — Senhor, com vossa mercê.

Velho — Por eu não ficar sem a vossa, queria de vós uma rosa.

Moça —Uma rosa? Para que?

Velho

Porque são colhidas de vossa mão, deixar-me-eis alguma vida, não

isente de paixão mas será consolação na partida.

Moça — Isso é por me deter, Ora tomai, e acabar!

Tomou o Velho a mão:

Jesus! E quereis brincar? Que galante e que prazer!

Velho — Já me deixais? Eu não vos esqueço mais e nem fico só comigo. Oh

martírios infernais! Não sei por que me matais, nem o que digo.

Vem um PARVO, criado do Velho, e diz:

Dono, dizia minha dona que fazeis vós cá té à noite?

Velho — Vai-te! Queres que t’açoite? Oh! Dou ao demo a intrujona sem saber!

Parvo — Diz que fosseis vós comer e não demoreis aqui.

Velho — Não quero comer, nem beber.

Parvo — Pois que haver cá de fazer?

Velho — Vai-te daí!

Parvo — Dono, veio lá meu tio, estava minha dona, então ela, metendo lume à

panela o fogo logo subiu.

Velho — Oh Senhora! Como sei que estais agora sem saber minha saudade. Oh!

Senhora matadora, meu coração vos adora de vontade!

Parvo — Raivou tanto! Resmungou! Oh pesar ora da vida! Está a panela cozida,

minha dona não jantou.