Não quereis?
Velho — Não hei de comer desta vez, nem quero comer bocado.
Parvo — E se vós, dono, morreis? Então depois não falareis senão finado. Então na
terra nego jazer, então, finar dono, estendido.
Velho — Antes não fora eu nascido, ou acabasse de viver!
Parvo — Assim, por Deus! Então tanta pulga em vós, tanta bichoca nos olhos, ali,
cos finado, sós, e comer-vos-ão a vós os piolhos. Comer-vos-ão as cigarras e os
sapos! Morrei! Morrei!
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Velho — Deus me faz já mercê de me soltar as amaras. Vai saltando! Aqui te fico
esperando; traze a viola, e veremos.
Parvo — Ah! Corpo de São Fernando! Estão os outros jantando, e cantaremos?!...
Velho — Fora eu do teu teor, por não se sentir esta praga de fogo, que não se
apaga, nem abranda tanta dor... Hei de morrer.
Parvo — Minha dona quer comer; Vinde, infeliz, que ela brada! Olhai! Eu fui lhe
dizer dessa rosa e do tanger, e está raivada!
Velho — Vai tu, filho Joane, e dize que logo vou, que não há tempo que cá estou.
Parvo — Ireis vós para o Sanhoane! Pelo céu sagrado, que meu dono está danado!
Viu ele o demo no ramo. Se ele fosse namorado, logo eu vou buscar outro amo.
Vem a Mulher do Velho e diz:
Hui! Que sina desastrada! Fernandeanes, que é isto?
Velho — Oh pesar do anticristo. Oh velha destemperada! Vistes ora?
Mulher — E esta dama onde mora? Hui! Infeliz dos meus dias! Vinde jantar em má
hora: por que vos meter agora em musiquias?
Velho — Pelo corpo de São Roque, vai para o demo a gulosa!
Mulher – Quem vos pôs aí essa rosa? Má forca que vos enforque!
Velho — Não maçar! Fareis bem de vos tornar porque estou tão sem sentido; não
cureis de me falar, que não se pode evitar ser perdido!
Mulher — Agora com ervas novas vos tornastes garanhão!...
Velho — Não sei que é, nem que não, que hei de vir a fazer trovas.
Mulher — Que peçonha! Havei, infeliz, vergonha ao cabo de sessenta anos, que
sondes vós carantonha.
Velho — Amores de quem me sonha tantos danos!
Mulher — Já vós estais em idade de mudardes os costumes.
Velho — Pois que me pedis ciúmes, eu vo-los farei de verdade.
Mulher — Olhai a peça!
Velho — Que o demo em nada me empeça, senão morrer de namorado.
Mulher — Está a cair da tripeça e tem rosa na cabeça e embeiçado!...
Velho — Deixar-me ser namorado, porque o sou muito em extremo!
Mulher — Mas vos tome inda o demo, se vos já não tem tomado!
Velho — Dona torta, acertar por esta porta, Velha mal-aventurada! Saia, infeliz ,
desta horta!
Mulher — Hui, meu Deus, que serei morta, ou espancada!
Velho — Estas velhas são pecados, Santa Maria vai com a praga! Quanto mais
homem as afaga, tanto mais são endiabradas!
(Canta)
“Volvido nos han volvido,
volvido nos han:
por uma vecina mala
meu amor tolheu-lhe a fala
volvido nos han.”
Entra Branca Gil, Alcoviteira, e diz:
Mantenha Deus vossa Mercê.
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Velho — Olá! Venhais em boa hora! Ah! Santa Maria! Senhora. Como logo Deus
provê!
Alcoviteira — Certo, oh fadas! Mas venho por misturadas, e muito depressa ainda.
Velho — Misturadas preparadas, que hão de fazer bem guisadas vossa vinda!
Justamente nestes dias, em tempo contra a razão, veio amor, sem intenção, e fez de
mim outro Macias tão penado, que de muito namorado creio que culpareis porque
tomei tal cuidado; e do velho destampado zombareis.
Alcoviteira — Mas, antes, senhor agora na velhice anda o amor; o de idade de
amador por acaso se namora; e na corte nenhum mancebo de sorte não ama como
soía. Tudo vai em zombaria! Nunca morrem desta morte nenhum dia. E folgo ora de
ver vossa mercê namorado, que o homem bem criado até à morte o há de ser, por
direito. Não por modo contrafeito, mas firme, sem ir atrás, que a todo homem perfeito
mandou Deus no seu preceito: amarás.
Velho — Isso é o que sempre brado, Branca Gil, e não me vai, que eu não daria um
real por homem desnamorado. Porém, amiga, se nesta minha fadiga vós não sois
medianeira, não sei que maneira siga, nem que faça, nem que diga, nem que queira.
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