Alcoviteira — Ando agora tão ditosa (louvores a Virgem Maria!), que logro mais do

que queria pela minha vida e vossa. De antemão, faço uma esconjuração c’um

dente de negra morta antes que entre pela porta qualquer duro coração que a

exorta.

Velho — Dizede-me: quem é ela?

Alcoviteira — Vive junto com a Sé. Já! Já! Já! Bem sei quem é! É bonita como

estrela, uma rosinha de abril, uma frescura de maio, tão manhosa, tão sutil!...

Velho — Acudi-me Branca Gil, que desmaio.

Esmorece o Velho e a Alcoviteira começa a ladainha:

Ó precioso Santo Areliano, mártir bem-aventurado,

Tu que foste marteirado neste mundo cento e um ano;

Ó São Garcia Moniz, tu que hoje em dia

Fazes milagres dobrados, dá-lhe esforço e alegria,

Pois que és da companhia dos penados!

Ó Apóstolo São João Fogaça, tu que sabes a verdade,

Pela tua piedade, que tanto mal não se faça!

Ó Senhor Tristão da Cunha, confessor,

Ó mártir Simão de Sousa, pelo vosso santo amor.

Livrai o velho pecador de tal cousa!

Ó Santo Martim Afonso de Melo, tão namorado.

Dá remédio a este coitado, e eu te direi um responso com devoção!

Eu prometo uma oração, todo dia, em quatro meses,

Por que lhe deis força, então, meu senhor São Dom João de Meneses!

Ó mártir Santo Amador Gonçalo da Silva, vós, que sois o melhor de nós,

Porfioso em amador tão despachado, chamai o martirizado

Dom Jorge de Eça a conselho!

Dois casados num cuidado, socorrei a este coitado deste velho!

Arcanjo São Comendador Mor de Avis, mui inflamado,

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Que antes que fosseis nado, fostes santo no amor!

E não fique o precioso Dom Anrique, outro Mor de Santiago;

Socorrei-lhe muito a pique, antes que demo repique com tal pago.

Glorioso São Dom Martinho, apóstolo e Evangelista, passai o fato em revista,

Porque leva mau caminho, e daí-lhe espírito!

Ó Santo Barão de Alvito, Serafim do deus Cupido, consolai o velho aflito,

Porque, inda que contrito, vai perdido!

Todos santos marteirados, socorrei ao marteirado, que morre de namorado,

Pois morreis de namorados.

Para o livrar, as virgens quero chamar,

Que lhe queiram socorrer, ajudar e consolar,

Que está já para acabar de morrer.

Ó Santa Dona Maria Anriques tão preciosa,

Queirais-lhe ser piedosa, por vossa santa alegria!

E vossa vista, que todo o mundo conquista,

Esforce seu coração, porque à sua dor resista,

Por vossa graça e benquista condição.

Ó Santa Dona Joana de Mendonça, tão formosa,

Preciosa e mui lustrosa mui querida e mui ufana!

Daí-lhe vida com outra santa escolhida que tenho in voluntas mea;

Seja de vós socorrida como de Deus foi ouvida a Cananea.

Ó Santa Dona Joana Manuel, pois que podeis, e sabeis, e mereceis

Ser angélica e humana, socorrei!

E vós, senhora, por mercê, ó Santa Dona Maria de Calataúd,

Por que vossa perfeição lhe dê alegria.

Santa Dona Catarina de Figueiró, a Real,

Por vossa graça especial que os mais altos inclina!

E ajudará Santa Dona Beatriz de Sá:

Daí-lhe, senhora, conforto, porque está seu corpo já quase morto.

Santa Dona Beatriz da Silva, que sois aquela mais estrela que donzela,

Como todo o mundo diz!

E vós, sentida Santa Dona Margarida de Sousa, lhe socorrei,

Se lhe puderdes dar vida, porque está já de partida sem porquê!

Santa Dona Violante de Lima, de grande estima,

Mui subida, muito acima de estimar nenhum galante!

Peço-vos eu, e a Dona Isabel de Abreu, co siso que Deus vos deu,

Que não morra de sandeu em tal idade!...

Ó Santa Dona Maria de Ataíde, fresca rosa, nascida em hora ditosa,

Quando Júpiter se ria!

E, se ajudar Santa Dona Ana, sem par de, Eça, bem aventurada,

Podei-lo ressuscitar, que sua vida vejo estar desesperada.

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Santas virgens, conservadas em mui santo e limpo estado,

Socorrei ao namorado, que vos vejais namoradas!

Velho

Óh! Coitado!

Ai triste desatinado!

Ainda torno a viver?

Cuidei que já era livrado.

Alcoviteira — Que esforço de namorado e que prazer! Que hora foi aquela!

Velho — Que remédio me dais vós?

Alcoviteira — Vivereis, prazendo a Deus, e casar-vos-ei com ela.

Velho — É vento isso!

Alcoviteira — Assim seja o paraíso. Que isso não é tão extremo! Não curedes vós

de riso, que eu farei tão de improviso como o demo. E também doutra maneira se eu

me quiser trabalhar.

Velho — Ide-lhe, logo, falar e fazei com que me queira, pois pereço; e dizei-lhe que

lhe peço se lembre que tal fiquei estimado em pouco preço, e, se tanto mal mereço,

não no sei! E, se tenho esta vontade, não deve ela s’agastar; antes deve de folgar

ver-nos morto nesta idade. E, se reclama que sendo tão linda dama por ser velho me

aborrece, dizei-lhe: é um mal quem desama porque minh’alma que a ama não

envelhece.

Alcoviteira — Sus! Nome de Jesus Cristo! Olhai-me pela cestinha.

Velho —Tornai logo, fada minha, que eu pagarei bem isto.

Vai-se a Alcoviteira, e fica o Velho tangendo e cantando a cantiga seguinte:

Pues tengo razón, señora,

Razón es que me laa oiga!

Vem a Alcoviteira e diz o Velho

Venhais em boa hora, amiga!

Alcoviteira — Já ela fica de bom jeito; mas, para isto andar direito, é razão que vo-lo diga: eu já, senhor meu, não posso, sem gastardes bem do vosso, vencer uma

moça tal.

Velho — Eu lhe pagarei em grosso.

Alcoviteira — Aí está o feito nosso, e não em al. Perca-se toda a fazenda, por

salvardes vossa vida!

Velho — Seja ela disso servida, que escusada é mais contenda.

Alcoviteira — Deus vos ajude, e vos dê mais saúde, que assim o haveis de fazer,

que viola nem alaúde nem quantos amores pude não quer ver.