Os Fidalgos da Casa Mourisca
Os Fidalgos da Casa Mourisca
Júlio Dinis
Esta obra respeita as regras
Do novo acordo ortográfico
INTRODUÇÃO
A tradição popular em Portugal, nos assuntos de história pátria, não se remonta além do período da dominação árabe nas Espanhas.
Pouco ou nada sabe o povo de celtiberos, de romanos e de visigodos.
É, porém, entre ele, noção corrente que, em outros tempos, fora este país habitado por mouros, e que só à força de cutiladas e de botes de lança os expulsaram os Cristãos para as terras da Mourama.
Os vultos heroicos de reis e cavaleiros nossos, que se assinalaram nas lutas dessa época, ainda não desapareceram das crónicas orais, onde vivem iluminados por a mesma poética luz das xácaras e dos romances nacionais; e hoje ainda, nas danças e jogos que se celebram nos lugares públicos das vilas e aldeias, por ocasião das principais solenidades do ano, apraz-se a memória do povo de recordar os feitos daqueles tempos históricos por meio de simulados combates de mouros e cristãos.
Nos contos narrados em volta da lareira, onde nas longas noites de serão se reúne a família rústica, ou às rápidas horas de uma noite de Estio, na soleira da porta, ao auditório atento que segue com os olhos a Lua em silenciosa carreira por um céu sem estrelas, avulta uma criação extremamente simpática, a das mouras encantadas, princesas formosíssimas que ficaram desses remotos tempos na península em paços invisíveis à espera de quem lhes venha quebrar o cativeiro, soltando a palavra mágica.
Fala-se em diversos pontos das nossas províncias, com a seriedade que é própria a uma arreigada crença, de tesouros enterrados, que os Mouros por aí deixaram, na esperança de voltarem um dia a resgatá-los, e já não têm sido poucas as escavações empreendidas no ávido intuito de os descobrir.
CAPÍTULO I
Esta mesma noção histórica do povo é a que dá lugar à outro frequente facto. Quando, no centro de qualquer aldeia, se eleva um palácio, um solar de família, distinto dos edifícios comuns por uma qualquer particularidade arquitetónica mais saliente, ouvireis no sítio designá-lo por nome de Casa Mourisca, e, se não se guarda aí memória da sua fundação, a crónica lhe assinalará infalivelmente, como data, a lendária e misteriosa época dos Mouros.
Era o que sucedia com o solar dos senhores Negrões de Vilar de Corvos, que, em três léguas em redondo, eram por isso conhecidos pelo nome de Fidalgos da Casa Mourisca.
Não se persuada o leitor de que possuía aquele solar feição pronunciadamente árabe, que justificasse a denominação popular, ou que mãos agarenas houvessem de feito cimentado os alicerces da casa nobre denominada assim. Às pequenas torres quadradas, que se erguiam, coroadas de ameias, nos quatro do ângulos edifício, ao desenho ogival das portas e janelas, às estreitas seteiras abertas nos muros, e finalmente a certo ar de castelo feudal, que um dos antepassados desta fidalga família tentou dar aos paços da sua residência senhoril, devera ela a classificação de Mourisca, que persistira, apesar dos protestos da arte. Nenhum estilo arquitetónico fora na construção escrupulosamente respeitado; o gosto e capricho do proprietário presidiram mais que tudo à traça e execução da obra; não há, pois, exigências artísticas que me imponham a obrigação de descrevê-la miudamente.
Diga-se, porém, a verdade; fossem quais fossem os defeitos de arquitetura, as incongruências e absurdos daquela fábrica grandiosa, quem, ao dobrar a última curva da estrada irregular por onde se vinha à aldeia, via surgir de repente do seio de um arvoredo secular aquele vulto escuro e sombrio, contrastando com os brancos e risonhos casais disseminados por entre a verdura das colinas próximas, mal podia reter uma exclamação de surpresa, e involuntariamente parava a contemplá-lo.
Ou o Sol no poente lhe dourasse a fachada de granito, ou as ameias, que o coroavam, se desenhassem como negra dentadura no céu azul, iluminado pela claridade matinal, era sempre melancólico e triste o aspeto daquela residência, sempre majestoso e severo.
Reparando mais atentamente, outros motivos concorriam ainda para fortalecer esta primeira impressão. O tempo não se limitara a colorir o velho solar com as tintas negras da sua palheta; derrocara-lhe a cruz da capela, desconjuntara-lhe a cantaria em extensos lanços de muro, abrindo-lhe interstícios de onde irrompia uma inútil vegetação parasita; e esta permanência de estragos, traindo a incúria ou a insuficiência de meios do proprietário atual, iniciava no espírito do observador uma série de melancólicas reflexões.
E se o movesse a curiosidade a indagar na vizinhança informações sobre a família que ali habitava, obtê-las-ia próprias a corroborar-lhe os seus primeiros e espontâneos juízos.
Os chamados Fidalgos da Casa Mourisca eram atualmente três.
D. Luís, o pai, velho sexagenário, grave, severo e taciturno; Jorge e Maurício, os seus dois filhos, robustos e esbeltos rapazes: o mais velho dos quais, Jorge, ainda não completara vinte e três anos.
A história daquela casa era a história sabida dos ricos fidalgos da província, que, orgulhosos e imprevidentes, deixaram, a pouco e pouco, embaraçar as propriedades com hipotecas e contratos ruinosos, desfalecer a cultura nos campos, empobrecer os celeiros, despovoar os currais, exaurir a seiva da terra, transformar longas várzeas em charnecas, e desmoronarem-se as paredes das residências e das granjas, e os muros de circunscrição das quintas.
Filho segundo de uma das mais nobres famílias da província, D. Luís fora pelos pais destinado para a carreira diplomática, na qual entrou apadrinhado e favorecido por os mais altos personagens da corte.
Nas primeiras capitais da Europa, em cujas embaixadas serviu, obteve o fidalgo provinciano um grau de ilustração e de trato do mundo, um verniz social, que nunca adquiriria se, como tantos, de novo se criasse para morgado.
Quando, por morte do primogénito, veio a suceder nos vínculos, D. Luís podia considerar-se, graças à ocupação dos seus primeiros anos de mocidade, como o mais instruído e civilizado proprietário da sua província; e como tal efetivamente foi sempre havido pelos outros, que o tratavam com uma deferência excecional.
Ainda depois da morte do irmão, D. Luís, costumado ao viver da grande sociedade e à esplêndida elegância das cortes estrangeiras, não abandonou a carreira que encetara. Secretário da embaixada em Viena, casou ali com a filha de um fidalgo português, que então residia nessa corte, encarregado de negócios políticos.
Ao manifestarem-se em Portugal os primeiros sintomas da profunda revolução, que devia alterar a face social do País, D. Luís mostrou-se logo hostil ao movimento nascente, e abandonando então o seu lugar diplomático, voltou ao reino para representar um papel importante nas cenas políticas dessa época.
Ali tiveram origem grande parte dos desgostos domésticos, que lhe amarguraram o resto da vida.
Os parentes da sua esposa abraçaram a causa liberal.
D. Luís, com toda a intolerância partidária, rompeu completamente as relações com eles, ferindo assim no íntimo os afetos mais santos da pobre senhora, que sentia esmagar-se-lhe o coração entre as fortes e irreconciliáveis paixões dos que ela com igual afeto amava.
O rancor faccioso foi ainda mais longe em D. Luís. Impeliu-o à perseguição.
O irmão mais novo da esposa, obedecendo ao entusiasmo de rapaz e à veemência de uma convicção sincera, sustentara com a pena, e mais tarde com a espada, a causa da ideia nova, que tanto namorava os ânimos generosos e juvenis.
Sobre a bela e arrojada cabeça daquele adolescente pesaram as sombras das suspeitas e das vinganças políticas; e D. Luís, cego pela paixão, não duvidou em fazer-se instrumento delas.
Este era o irmão querido da esposa, que o fidalgo estremecia; mas nem as súplicas, nem as lágrimas dela puderam abrandar a força daquele rancor.
O imprudente rapaz viu-se perseguido, preso, processado, e em quase iminente risco de expiar, como tantos, no suplício o crime de pensar livremente. Conseguindo, quase por milagre, escapar à fúria dos seus perseguidores, emigrou para voltar mais tarde nessa memoranda expedição, que principiou em Portugal a heroica ilíada da nossa emancipação política.
Guerreiro tão fogoso, como o fora publicista, o pobre rapaz não assistiu, porém, à vitória da sua causa. Ao raiar da aurora liberal, porque tanto anelava, caiu numa das últimas e mais disputadas refregas daquela sanguinolenta luta, crivado de balas inimigas, sendo a sua última voz um grito de entusiasmo pela grande ideia, em cujo martirológio se ia inscrever o seu nome.
A morte deste entusiasta levou o luto e a tristeza ao solar da D. Luís. O coração amorável e extremoso da infeliz senhora recebeu então um golpe decisivo; das consequências daquela dor nunca mais podia ela convalescer. A sua vida foi depois toda para luto e para lágrimas.
Fez-se a paz, e implantou-se no País a árvore da liberdade; D. Luís deixou então a vida da corte e veio encerrar no canto da província os seus despeitos, os seus ódios e os seus desalentos. Trouxe consigo um enxame de misantropos, a quem o sol da liberdade igualmente incomodava, e que tinham resolvido pedir à natureza conforto contra os supostos delitos da humanidade.
O solar do fidalgo transformou-se, pois, em asilo de muitos correligionários, como ele desgostosos e irreconciliáveis com a nova organização social.
Instituiu-se ali uma pequena corte na aldeia, uma espécie de assembleia ou conventículo político, que não poucas vezes atraiu as vistas dos liberais desconfiados e as ameaças dos mais insofridos. Havia ali homens de todas as condições, e alguns de ilustração e de ciência.
A hospitalidade do fidalgo era magnífica. D. Luís mostrava ignorar ou não querer saber, qual o preço porque ela lhe ficava. Indiferente a tudo, dir-se-ia sê-lo também à ruína da sua própria casa, que apressava assim.
A vitória da causa contrária; a morte, em curtos intervalos, de três filhos que parecia caírem vítimas de uma sentença fatal; o receio pela vida dos outros; a tristeza e doença progressivas da esposa, a quem aqueles ódios e lutas tinham despedaçado o coração; às vezes uma vaga consciência da sua situação precária, e porventura ainda remorsos pelas violências, a que os ódios políticos o impeliram, quebrantaram o carácter, outrora varonil, daquele homem, que desde então começou a mostrar-se taciturna e descoroçoado. A prova evidente de que alguns remorsos também lhe torturavam o espírito, fora a insólita generosidade com que recebeu e gasalhou permanentemente na sua casa um pobre soldado do exército liberal, meio mutilado pela guerra desses tempos, e que tinha sido o fiel camarada do infeliz mancebo, contra quem tanto se encarniçara o ódio do implacável realista.
Viera o soldado entregar à esposa do fidalgo uma medalha, última lembrança do irmão que lha enviara, quando já agonizante no campo do combate. Havia-a confiado ao camarada, para que a entregasse àquela, a quem tanto queria.
D. Luís não só permitiu que o soldado fizesse a entrega em mão própria da esposa, mas deixou-o com ela em larga conferência, não querendo que a sua presença a reprimisse na ânsia natural de saber as menores particularidades da vida e da morte do infeliz de quem o emissário fora companheiro inseparável. Não se limitou a isso a tolerância do fidalgo.
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