Depois, por vezes, entre dois robbers ou conversando em volta da bandeja do chá, os seus amigos tinham observações que o inquietavam, partindo d'aquelles homens que habitavam Lisboa, lhe conheciam os rumores - emquanto elle passava alli, inverno e verão, entre os seus livros e as suas rosas. Era o excellente Sequeira que perguntava porque não faria Pedro uma viagem longa, para se instruir, á Allemanha, ao Oriente? Ou o velho Luiz Runa, o primo d'Affonso, que, a proposito de cousas indifferentes, rompia lamentando os tempos em que o Intendente da policia podia livremente expulsar de Lisboa as pessoas importunas... Evidentemente alludiam á Monforte, evidentemente julgavam-n'a perigosa.

No verão, Pedro partiu para Cintra; Affonso soube que os Monfortes tinham lá alugado uma casa. Dias depois o Villaça appareceu em Bemfica, muito preoccupado: na vespera Pedro visitara-o no cartorio, pedira-lhe informações sobre as suas propriedades, sobre o

meio de levantar dinheiro. Elle lá lhe dissera que em setembro, chegando á sua maioridade, tinha a legitima da mamã...

- Mas não gostei d'isto, meu senhor, não gostei d'isto...

- E porque, Villaça? O rapaz quererá dinheiro, quererá dar presentes á creatura... O

amor é um luxo caro, Villaça.

- Deus queira que seja isso, meu senhor, Deus o ouça!

E aquella confiança tão nobre de Affonso da Maia no orgulho patricio, nos brios de raça de seu filho, chegava a tranquillisar Villaça.

D'ahi a dias, Affonso da Maia viu emfim Maria Monforte. Tinha jantado na quinta do Sequeira ao pé de Queluz, e tomavam ambos o seu café no mirante, quando entrou pelo caminho estreito que seguia o muro a caleche azul com os cavallos cobertos de redes.

Maria, abrigada sob uma sombrinha escarlate, trazia um vestido côr de rosa cuja roda, toda em folhos, quasi cobria os joelhos de Pedro sentado ao seu lado: as fitas do seu chapéo, apertadas n'um grande laço que lhe enchia o peito, eram tambem côr de rosa: e a sua face, grave e pura como um marmore grego, apparecia realmente adoravel, illuminada pelos olhos d'um azul sombrio, entre aquelles tons rosados. No assento defronte, quasi todo tomado por cartões de modista, encolhia-se o Monforte, de grande chapéo panamá, calça de ganga, o mantelete da filha no braço, o guarda sol entre os joelhos. Iam callados, não viram o mirante; e, no caminho verde e fresco, a caleche passou com balanços lentos, sob os ramos que roçavam a sombrinha de Maria. O Sequeira ficara com a chavena de café junto aos labios, de olho esgazeado, murmurando:

- Caramba! É bonita!

Affonso não respondeu: olhava cabisbaixo aquella sombrinha escarlate, que agora se inclinava sobre Pedro, quasi o escondia, parecia envolvel-o todo - como uma larga mancha de sangue alastrando a caleche sob o verde triste das ramas.

O outono passou, chegou o inverno, frigidissimo. Uma manhã, Pedro entrou na livraria onde o pae estava lendo junto ao fogão; recebeu-lhe a benção, passou um momento os olhos por um jornal aberto, e voltando-se bruscamente para elle:

- Meu pae, - disse, esforçando-se por ser claro e decidido - venho pedir-lhe licença para casar com uma senhora que se chama Maria Monforte.

Affonso pousou o livro aberto sobre os joelhos, e n'uma voz grave e lenta:

- Não me tinhas fallado d'isso... Creio que é a filha d'um assassino, d'um negreiro, a quem chamam tambem a negreira...

- Meu pae!

Affonso ergueu-se diante d'elle, rigido e inexoravel como a encarnação mesma da honra domestica.

- Que tens a dizer-me mais? Fazes-me corar de vergonha.

Pedro, mais branco que o lenço que tinha na mão, exclamou todo a tremer, quasi em soluços:

- Pois póde estar certo, meu pae, que hei de casar! Sahiu, atirando furiosamente com a porta. No corredor gritou pelo escudeiro, muito alto para que o pae ouvisse, e deu-lhe ordem para levar as suas malas ao hotel da Europa.

Dois dias depois Villaça entrou em Bemfica, com as lagrimas nos olhos, contando que o menino casára n'essa madrugada – e segundo lhe dissera o Sergio, procurador do Monforte, ia partir com a noiva para a Italia.

Affonso da Maia sentára-se n'esse instante á mesa do almoço, posta ao pé do fogão: ao centro, um ramo esfolhava-se n'um vaso do Japão, á chamma forte da lenha: e junto ao talher de Pedro estava o numero da Grinalda, jornal de versos que elle costumava receber...

Affonso ouviu o procurador, grave e mudo, continuando a desdobrar lentamente o seu guardanapo.

- Já almoçou, Villaça?

O procurador, assombrado d'aquella serenidade, balbuciou:

- Já almocei, meu senhor...

Então Affonso, apontando para o talher de Pedro, disse ao escudeiro:

- Póde tirar d'alli esse talher, Teixeira. D'aqui por diante ha só um talher á mesa...