Estava de seda côr de trigo, com duas rosas amarellas e uma espiga nas tranças, opalas sobre o collo e nos braços; e estes tons de ceara madura batida do sol, fundindo-se com o ouro dos cabellos, illuminando-lhe a carnação eburnea, banhando as suas fórmas de estatua, davam-lhe o esplendor d'uma Ceres. Ao fundo entreviam-se os grandes bigodes loiros do Mello, que conversava de pé com o papá Monforte - escondido como sempre no canto negro da frisa.
O Alencar foi observar «o caso» do camarote dos Gamas. Pedro voltára á sua cadeira, e de braços cruzados contemplava Maria. Ella conservou algum tempo a sua attitude de Deusa insensivel; mas, depois, no duetto de Rosina e Lindor, duas vezes os seus olhos azues e profundos se fixaram n'elle, gravemente e muito tempo. O Alencar, correu ao Marrare, de braços ao ar, a berrar a novidade.
Não tardou de resto a fallar-se em toda a Lisboa da paixão de Pedro da Maia pela negreira. Elle tambem namorou-a publicamente, á antiga, plantado a uma esquina, defronte do palacete dos Vargas, com os olhos cravados na janella d'ella, immovel e pallido d'extasi.
Escrevia-lhe todos os dias duas cartas em seis folhas de papel - poemas desordenados que ia compôr para o Marrare: e ninguem lá ignorava o destino d'aquellas paginas de linhas encruzadas que se accumulavam deante d'elle sobre o taboleiro da genebra. Se algum amigo vinha á porta do café perguntar por Pedro da Maia, os criados já respondiam muito naturalmente:
- O sr. D. Pedro? Está a escrever á menina.
E elle mesmo, se o amigo se acercava, estendia-lhe a mão, exclamava radiante, com o seu bello e franco sorriso:
- Espera ahi um bocado, rapaz, estou a escrever á Maria!
Os velhos amigos de Affonso da Maia que vinham fazer o seu whist a Bemfica, sobretudo o Villaça, o administrador dos Maias, muito zeloso da dignidade da casa, não tardaram em lhe trazer a nova d'aquelles amores do Pedrinho. Affonso já os suspeitava: via todos os dias um criado da quinta partir com um grande ramo das melhores camelias do jardim; todas as manhãs cedo encontrava no corredor o escudeiro, dirigindo-se ao quarto do menino, a cheirar regaladamente o perfume d'um enveloppe com sinete de lacre dourado; -
e não lhe desagradava que um sentimento qualquer, humano e forte, lhe fosse arrancando o filho á estroinice bulhenta, ao jogo, ás melancolias sem rasão em que reapparecia o negro ripanço...
Mas ignorava o nome, a existencia sequer dos Monfortes; e as particularidades que os amigos lhe revelaram, aquella facada nos Açores, o chicote de feitor na Virginia, o brigue Nova Linda, toda a sinistra legenda do velho contrariou muito Affonso da Maia.
Uma noite que o coronel Sequeira, á mesa do whist, contava que vira Maria Monforte e Pedro passeando a cavallo, «ambos muito bem e muito distingués», Affonso, depois d'um silencio, disse com um ar enfastiado:
- Emfim, todos os rapazes teem as suas amantes... Os costumes são assim, a vida é assim, e seria absurdo querer reprimir taes cousas. Mas essa mulher, com um pae d'esses, mesmo para amante acho má.
O Villaça suspendeu o baralhar das cartas, e ageitando os oculos d'ouro exclamou com espanto:
- Amante! Mas a rapariga é solteira, meu senhor, é uma menina honesta!...
Affonso da Maia enchia o seu cachimbo; as mãos começaram a tremer-lhe; e voltando-se para o administrador, n'uma voz que tremia um pouco tambem:
- O Villaça de certo não suppõe que meu filho queira casar com essa creatura...
O outro emmudeceu. E foi o Sequeira que murmurou:
- Isso não, está claro que não...
E o jogo continuou algum tempo em silencio.
Mas Affonso da Maia principiou a andar descontente. Passavam-se semanas que Pedro não jantava em Bemfica. De manhã, se o via, era um momento, quando elle descia ao almoço, já com uma luva calçada, apressado e radiante, gritando para dentro se estava sellado o cavallo; depois, mesmo de pé, bebia um gole de chá, perguntava a correr «se o papá queria alguma cousa», dava um geito ao bigode deante do grande espelho de Veneza sobre o fogão, e lá partia, enlevado. Outras vezes todo o dia não sahia do quarto: a tarde descia, accendiam-se as luzes; até que o pae, inquieto, subia, ia encontral-o estirado sobre o leito, com a cabeça enterrada nos braços.
- Que tens tu? - perguntava-lhe.
- Enchaqueca, - respondia n'um tom surdo e rouco.
E Affonso descia indignado, vendo em toda aquella angustia covarde alguma carta que não viera, ou talvez uma rosa offerecida que não fôra posta nos cabellos...
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