Mas não é justo, Mary Jane, e não é certo.
Ela estava arrebatada e teria continuado a defender a irmã, porque esse assunto sempre a incomodava; porém Mary Jane, vendo que os dançarinos estavam de volta, fez uma intervenção pacífica:
— Tia Kate, a senhora está dando vexame na frente do sr. Browne, que pensa diferente.
A Tia Kate voltou-se em direção ao sr. Browne, que riu da alusão à crença que seguia, e disse às pressas:
— Ah, mas eu não estou questionando as razões do papa. Sou apenas uma velha burra e não teria a pretensão de fazer uma coisa dessas. Mas eu acredito em gentileza e gratidão na vida cotidiana. E se eu estivesse no lugar da Julia eu teria dito na cara do padre Healy que...
— Tia Kate, não esqueça que estamos todos com fome, e quando estamos com fome os nossos ânimos ficam muito exaltados, disse Mary Jane.
— E quando estamos com a garganta seca os nossos ânimos também ficam muito exaltados, acrescentou o sr. Browne.
— Então é melhor a gente jantar, disse Mary Jane, e continuar a discussão depois.
No patamar do lado de fora da sala de estar Gabriel encontrou a esposa e Mary Jane tentando convencer a srta. Ivors a ficar para o jantar. Mas a srta. Ivors, que já tinha posto o chapéu e estava abotoando o casaco, não queria saber de ficar. Não estava com a menor fome e achava que já tinha passado da hora de ir embora.
— Só mais dez minutos, Molly, insistiu a sra. Conroy. Não vai fazer diferença nenhuma.
— A senhorita precisa comer alguma coisa depois de tanto dançar, disse Mary Jane.
— Eu realmente não posso, respondeu a srta. Ivors.
— Parece que a senhorita não se divertiu nem um pouco, disse Mary Jane, perdendo as esperanças.
— Garanto que me diverti um bocado, disse a srta. Ivors, mas agora eu preciso mesmo ir.
— Mas como a senhorita pretende ir para casa?, perguntou a sra. Conroy.
— Ah, é só uma caminhada curta pelo cais.
Gabriel hesitou por um instante e disse:
— Se me permite, srta. Ivors, eu posso acompanhá-la até em casa se a senhorita precisa mesmo ir.
Mas a srta. Ivors se afastou do grupo.
— Não mesmo, exclamou. Por favor, tratem de jantar em paz e não se preocupem comigo. Posso muito bem tomar conta de mim.
— Bem, você é a garota cômica, Molly, disse a sra. Conroy com franqueza.
– Beannacht libh, disse a srta. Ivors com uma risada enquanto descia correndo os degraus.
Mary Jane a acompanhou com os olhos e com uma expressão enigmática no rosto enquanto a sra. Conroy debruçava-se por cima do corrimão para ouvir o que se passava na porta do corredor. Gabriel perguntou se teria causado aquela partida repentina. Mas ela não parecia estar de mau humor: tinha ido embora às risadas. Gabriel lançou um olhar vazio em direção à escada.
Nesse momento a Tia Kate saiu cambaleando da sala de jantar, quase torcendo as mãos por conta do desespero.
— Onde está o Gabriel?, perguntou. Onde é que está o Gabriel? Está todo mundo esperando lá dentro e não temos ninguém para cortar o ganso!
— Aqui estou eu, Tia Kate!, exclamou Gabriel com súbita empolgação, pronto para cortar uma revoada inteira de gansos se necessário.
Havia um enorme ganso dourado em uma extremidade da mesa, e na outra, sobre um arranjo de papel crepom enfeitado com ramos de salsa, um grande presunto sem pele salpicado por uma crosta estaladiça, com uma bela franja ao redor do osso e, ao lado, uma porção de carne com especiarias. Entre as duas extremidades rivais estendiam-se duas linhas paralelas de acompanhamentos: duas pequenas catedrais de geleia, uma vermelha e a outra amarela; um prato raso com blocos de manjar branco cobertos de geleia vermelha, uma travessa verde em formato de folha com um pegador em formato de talo repleta de passas pretas e amêndoas descascadas, um prato onde estava disposto um sólido retângulo de figos de Esmirna, um prato de creme de pasteleiro coberto de noz-moscada moída, uma pequena tigela repleta de doces e chocolates embalados em papéis dourados e prateados e um vaso de vidro com longos talos de aipo. No centro da mesa erguiam-se, como sentinelas da fruteira que ostentava uma pirâmide de laranjas e maçãs americanas, um par de decantadores atarracados à moda antiga, um com vinho do porto e o outro com xerez escuro. Em cima do piano de mesa um pudim em um enorme prato amarelo estava de prontidão, e logo atrás viam-se três esquadrões de garrafas de stout e ale e água mineral, enfileirados segundo as cores dos uniformes: os dois primeiros de preto, com rótulos marrons e vermelhos, e o terceiro e menor esquadrão de branco, com listras verdes transversais.
Gabriel postou-se com solenidade à cabeceira da mesa e, depois de olhar para a lâmina da faca, espetou o garfo com firmeza no ganso.
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