Talvez ela nem ficasse triste com o eventual fracasso do discurso. Mas logo surgiu uma ideia que o encheu de coragem. Referindo-se à Tia Kate e à Tia Julia, diria: Senhoras e senhores, a geração que hoje aos poucos desaparece podia ter certos defeitos, mas de minha parte eu penso que tinha certas qualidades de hospitalidade, de humor e de humanidade que fazem muita falta a essa nova geração excessivamente séria e hipereducada que hoje cresce ao nosso redor. Ótimo: essa seria para a srta. Ivors. E daí que as duas tias fossem apenas duas senhoras ignorantes?
Um murmúrio na sala chamou-lhe a atenção. O sr. Browne avançava pela porta, acompanhando com trejeitos cavalheirescos a Tia Julia, que se apoiava no braço do convidado com um sorriso no rosto e a cabeça pendente. Irrupções de aplausos também a acompanharam ao piano, e então, quando Mary Jane sentou-se na banqueta e a Tia Julia, não mais sorrindo, deu uma meia-volta como que para projetar a voz para dentro da sala, aos poucos cessaram. Gabriel reconheceu o prelúdio. Era uma das velhas canções da Tia Julia – Arrayed for the Bridal. A voz, forte e clara, atacou com grande brio as escalas velozes que embelezavam a melodia, e embora ela tenha cantado bastante depressa não deixou passar um ornamento sequer. Seguir aquela voz sem olhar para o rosto da cantora era como sentir e compartilhar a emoção de um voo seguro em alta velocidade. Gabriel aplaudiu em alto e bom som junto com todos os outros quando a canção terminou e uma animada salva de palmas ergueu-se da invisível mesa de jantar. A admiração soou tão genuína que um certo rubor insinuou-se no rosto da Tia Julia quando ela se curvou para recolocar na estante de música a velha pasta de partituras encadernada em couro com iniciais na capa. Freddy Malins, que havia escutado com a cabeça inclinada de lado para ouvir melhor, continuou a aplaudir depois que todos já haviam parado enquanto mantinha uma animada conversa com a mãe, que acenava a cabeça com um grave e lento gesto afirmativo. Por fim, quando cansou de aplaudir, levantou-se de repente e atravessou a sala às pressas em direção à Tia Julia, tomou-lhe a mão e estreitou-a entre as suas, sacudindo-a quando as palavras lhe escapavam ou quando a costumeira nota em sua voz tornava-se excessiva.
— Agora mesmo eu estava dizendo para a minha mãe que eu nunca tinha visto a senhora cantar tão bem, disse, nunca! Não, eu nunca tinha ouvido a senhora cantar com uma voz tão boa quanto hoje. Ora! Quem diria? Mas é verdade. Dou a minha palavra de que é a mais pura verdade. Eu nunca tinha ouvido a sua voz tão fresca e... tão fresca e cristalina, nunca.
A Tia Julia abriu um largo sorriso e num sussurro disse alguma coisa sobre elogios enquanto soltava a mão. O sr. Browne estendeu-lhe a mão aberta e disse às pessoas mais próximas com os modos de um apresentador que revela um prodígio à plateia:
— Sra. Julia Morkan, minha última descoberta!
Estava rindo sozinho do gracejo quando Freddy Malins virou-se e disse:
— Bem, Browne, se você está falando sério essa descoberta não é nada má. Tudo o que posso dizer é que nunca ouvi ela cantar bem desse jeito desde que eu frequento essa casa. É a mais pura verdade.
— Nem eu, disse o sr. Browne. Acho que a voz da sra. Julia melhorou muito.
A Tia Julia encolheu os ombros e disse com um orgulho frágil:
— Trinta anos atrás a minha voz não era nada má.
— Eu sempre falei para a Julia, disse a Tia Kate em tom enfático, que aquele coral era um desperdício. Mas ela nunca prestava atenção no que eu dizia.
Virou-se como se estivesse apelando ao bom-senso dos outros em relação a uma criança teimosa enquanto a Tia Julia mantinha o olhar fixo à frente, com um vago sorriso contemplativo a brincar no rosto.
— Mas não, prosseguiu a Tia Kate, ela não queria saber da opinião dos outros e ficava se esfalfando dia e noite naquele coral. Seis da manhã no dia de Natal! E tudo isso para quê?
— Não seria para a glória de Deus, Tia Kate?, perguntou Mary Jane, virando-se na banqueta do piano com um sorriso.
A Tia Kate encarou a sobrinha com um olhar fulminante e disse:
— Eu sei tudo o que há para saber a respeito da glória de Deus, Mary Jane, mas acho que não é nem um pouco honroso para o papa expulsar as mulheres que se esfalfaram uma vida inteira nos corais para colocar um bando de meninos presunçosos acima delas. Deve ser para o bem da Igreja se o papa decidiu assim.
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