Damião, contente de si, não esqueceu
Lucrécia e olhou para ela, a ver se rira também. Viu-a com a cabeça metida na almofada para acabar a
tarefa. Não ria; ou teria rido para dentro, como tossia.
Saíram as vizinhas, e a tarde caiu de todo. A alma de Damião foi-se fazendo tenebrosa, antes da noite .
Que estaria acontecendo? De instante a instante, ia espiar pela rótula, e voltava cada vez mais
desanimado. Nem sombra do padrinho. Com certeza, o pai fê-lo calar, mandou chamar dous negros, foi à
polícia pedir um pedestre, e aí vinha pegá-lo à força e levá-lo ao seminário. Damião perguntou a Sinhá
Rita se a casa não teria saída pelos fundos, correu ao quintal e calculou que podia saltar o muro. Quis
ainda saber se haveria modo de fugir para a Rua da Vala, ou se era melhor falar a algum vizinho que
fizesse o favor de o receber. O pior era a batina; se Shlhá Rita lhe pudesse arranjar um rodaque, uma
sobrecasaca velha... Sinhá Rita dispunha justamente de um rodaque, lembrança ou esquecimento de João
Carneiro.
— Tenho um rodaque do meu defunto, disse ela, rindo; mas para que está com esses sustos? Tudo se há
de arranjar, descanse.
Afinal, à boca da noite, apareceu um escravo do padrinho, com uma carta para Sinhá Rita. O negócio
ainda não estava composto; o pai ficou furioso e quis quebrar tudo; bradou que não, senhor que o peralta
havia de ir para o seminário, ou então metia-o no Aljube ou na presiganga. João Carneiro lutou muito para
conseguir que o compadre não resolvesse logo, qne dormisse a noite, e meditasse bem se era conveniente
dar à religião um sujeito tão rebelde e vicioso. Explicava na carta que falou assim para melhor ganhar a
causa. Não a tinha por ganha, mas no dia seguinte lá iria ver o homem, e teimar de novo. Concluía
dizendo que o moço fosse para a casa dele.
Damião acabou de ler a carta e olhou para Sinhá Rita. Não tenho outra tábua de salvação, pensou ele.
Sinhá Rita mandou vir um tinteiro de chifre, e na meia folha da própria carta escreveu esta resposta:
"Joãozinho, ou você salva o moço, ou nunca mais nos vemos". Fechou a carta com obreia, e deu-a ao
escravo, para que a levasse depressa. Voltou a reanimar o seminarista, que estava outra vez no capuz da
humildade e da consternação. Disse-lhe que sossegasse, que aquele negóclo era agora dela.
— Hão de ver para quanto presto! Não, que eu não sou de brincadeiras!
Era a hora de recolher os trabalhos. Sinhá Rita examinou-os, todas as discípulas tinham concluído a
tarefa. Só Lucrécia estava ainda à almofada, meneando os bilros, já sem ver; Sinhá Rita chegou-se a ela,
viu que a tarefa não estava acabada, ficou furiosa, e agarrou-a por uma orelha.
— Ah! malandra!
— Nhanhã, nhanhã! pelo amor de Deus! por Nossa Senhora que está no céu.
— Malandra! Nossa Senhora não protege vadias!
Lucrécia fez um esforço, soltou-se das mãos da senhora, e fugiu para dentro; a senhora foi atrás e
agarrou-a.
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