— Anda cá!

— Minha senhora, me perdoe!

— Não perdôo, não.

E tornaram ambas à sala, uma presa pela orelha, debatendo-se, chorando e pedindo; a outra dizendo que

não, que a havia de castigar.

— Onde está a vara?

A vara estava à cabeceira da marquesa, do outro lado da sala Sinhá Rita, não querendo soltar a pequena,

bradou ao seminarista.

— Sr. Damião, dê-me aquela vara, faz favor?

Damião ficou frio. . . Cruel instante! Uma nuvem passou-lhe pelos olhos. Sim, tinha Jurado apadrinhar a

pequena, que por causa dele, atrasara o trabalho...

— Dê-me a vara, Sr. Damião!

Damião chegou a caminhar na direção da marquesa. A negrinha pediu-lhe então por tudo o que houvesse

mais sagrado, pela mãe, pelo pai, por Nosso Senhor.. .

— Me acuda, meu sinhô moço!

Sinhá Rita, com a cara em fogo e os olhos esbugalhados, instava pela vara, sem largar a negrinha, agora

presa de um acesso de tosse. Damião sentiu-se compungido; mas ele precisava tanto sair do seminário!

Chegou à marquesa, pegou na vara e entregou-a a Sinhá Rita.

O DICIONÁRIO

ERA UMA VEZ um tanoeiro, demagogo, chamado Bernardino, o qual em cosmografia professava a

opinião de que este mundo é um imenso tonel de marmelada, e em política pedia o trono para a multidão.

Com o fim de a pôr ali, pegou de um pau, concitou os ânimos e deitou abaixo o rei; mas, entrando no

paço, vencedor e aclamado, viu que o trono só dava para uma pessoa, e cortou a dificuldade sentando-se

em cima.

— Em mim, bradou ele, podeis ver a multidão coroada. Eu sou vós, vós sois eu.

O primeiro ato do novo rei foi abolir a tanoaria, indenizando os tanoeiros, prestes a derrubá-lo, com o

título de Magníficos. O segundo foi declarar que, para maior lustre da pessoa e do cargo, passava a

chamar-se, em vez de Bernardino, Bernardão. Particularmente encomendou uma genealogia a um grande

doutor dessas matérias, que em pouco mais de uma hora o entroncou a um tal ou qual general romano do

século IV, Bernardus Tanoarius; — nome que deu lugar à controvérsia, que ainda dura, querendo uns que

o rei Bernardão tivesse sido tanoeiro, e outros que isto não passe de uma confusão deplorável com o nome

do fundador da família. Já vimos que esta segunda opinião é a única verdadeira.

Como era calvo desde verdes anos, decretou Bernardão que todos os seus súbditos fossem igualmente

calvos, ou por natureza ou por navalha, e fundou esse ato em uma razão de ordem política, a saber, que a

unidade moral do Estado pedia a conformidade exterior das cabeças. Outro ato em que reveleu igual

sabedoria, foi o que ordenou que todos os sapatos do pé esquerdo tivessem um pequeno talho no lugar

correspondente ao dedo mínimo, dando assim aos seus súbditos o ensejo de se parecerem com ele, que

padecia de um calo. O uso dos óculos em todo o reino não se explica de outro modo, senão por uma

oftalmia que afligiu a Bernardão, logo no segundo ano do reinado. A doença levou-lhe um olho, e foi aqui

que se revelou a vocação poética de Bernardão, porque, tendo-lhe dito um dos seus dous ministros,

chamado Alfa, que a perda de um olho o fazia igual a Aníbal, — comparação que o lisonjeou muito, — o

segundo ministro, Ômega, deu um passo adiante, e achou-o superior a Homero, que perdera ambos os

olhos. Esta cortesia foi uma revelação; e como isto prende com o casamento, vamos ao casamento.

Tratava-se, em verdade, de assegurar a dinastia dos Tanoarius. Não faltavam noivas ao novo rei, mas

nenhuma lhe agradou tanto como a moça Estrelada, bela, rica e ilustre.