Uns atribuíam o fato inaudito à primeira derrota.

— Horácio, dizia um de seus amigos, como Napoleão, só devia ser derrotado uma vez. Mas essa vez foi Waterloo!

— Que pensa então?

— Que o pobre rapaz caminha para o seu rochedo de Santa Helena. Ou casa aí com alguma mulher feia e rica, ou engorda como um cevado.

Outros lembravam-se de algum desarranjo de fortuna, ou de alguma veleidade política, para explicar o mistério. Mas sabia-se que o moço tinha bom e seguro rendimento; e quanto à política, ele a comparava a uma embriaguez causada pela mais ordinária zurrapa de taberna.

Muitas vezes disse, gracejando, a seus amigos:

— Quando me quiser embriagar, em vez de zurrapa, beberei champanhe. É mais fino, e também mais barato, porque não deixa uma irritação de estômago, cujo preço é muito melhor ao de uma caixa de superior clicquot.

A causa real da mudança do leão, ninguém pois a sabia nem a suspeitava.

Depois do achado da botina, sua vida tomara um aspecto muito diferente. Naquela mesma tarde em que o deixamos na sua casa de Botafogo, terminado o jantar, mandou aprontar o tílburi e voltou à cidade. Seu aparecimento àquela hora na Rua do Ouvidor causou estranheza: um leão de raça, como ele, não passeia ao escurecer, sobretudo no centro do comércio, onde só ficam os que trabalham. Seria misturar-se com os leopardos que aproveitam a ausência dos reis da moda, para restolhar alguma caça retardada.

Correu Horácio todas as lojas de calçado à procura de informações. Para disfarçar sua paixão, inventara uma aposta, como pretexto à sua curiosidade. A um freguês como ele, não se recusava tão pequeno favor, sobretudo quando levava o sainete de uma anedota de bom-tom. A todos eles o leão se dirigia mais ou menos nestes termos:

— Fiz uma aposta com uma senhora: que em todo o Rio de Janeiro não se encontram três moças de 18 anos que calcem n° 29. Tenho todo o empenho em ganhar a aposta, não tanto pelos botões de punho, como porque, se ela perder, há de ser obrigada a mostrar-me seu pé, para eu verificar se é realmente desse tamanho. Peço-lhe, pois, que me dê uma nota das freguesas a quem costuma vender calçado deste número.

Nesta pesquisa gastou Horácio muitos dias, sem colher o menor resultado. Os poucos pares de calçado n° 29, vendidos pelas diferentes lojas, eram destinados a meninas de doze anos ou a pessoas desconhecidas, cuja idade se ignorava. Apesar de tudo o leão não desanimava; todas as manhãs, ao acordar, levantava um plano de campanha, que punha em prática durante o dia.

Horácio sentira-se de repente tomado de indefinível ternura por uma classe, de que antes só se lembrava para amaldiçoá-la: a classe dos sapateiros. Quando via um sujeito de avental de couro e sovela, o leão sentia-se atraído para aquele indivíduo, que talvez encerrasse o segredo de sua felicidade, seu futuro, sua existência. Outras vezes, porém, tinha de repente uns acessos de ciúme selvagem. Lembrando-se que esse operário talvez já houvesse tomado medida ao adorado pezinho; que essas mãos calosas teriam tocado a cútis acetinada do anjo de seus pensamentos, o mancebo sentia em si o furor de Otelo e procurava um punhal no seio; felizmente só achava a carteira, a adaga de ouro com que neste século se assassina mais cruelmente.

Depois de consumir as horas em suas indagações, ia contemplar a botina, prenda querida de seu amor, e prosseguia à noite sua porfia incansável. Corria os espetáculos e bailes, com o olhar rastejando para descobrir por baixo da orla do vestido, o ignoto deus de suas adorações. Não dançava para observar melhor o arregaçado dos vestidos; de ordinário andava pelas escadas e portas, a fim de aproveitar o ensejo da subida e descida; muitas vezes ia fumar junto ao lugar onde se colocavam os lacaios, na esperança de conhecer o portador da botina.

Quando as rainhas da moda, as deusas do salão, surpresas e atônitas, o viam passar sem distingui-las com uma palavra ou uma fineza, ele, atirando-lhes um olhar de compaixão, dizia consigo.

— Coitadas! não sabem que o leão viu a pata da gazela e fareja-lhe o rastro. Que lhe importam as garras da pantera?...

Recolhendo, Horácio acendia duas velas transparentes e colocava-as a um e outro lado da almofada de veludo escarlate, sobre uma mesinha de charão, embutida de madrepérolas. Tirava de um elegante cofre de platina a mimosa botina, e com respeitosa delicadeza deitava-a sobre a almofada, de modo que se visse perfeitamente a graciosa forma do pé que habitara aquele ninho de amor.

Então acendia o charuto, sentava-se numa cadeira de espreguiçar, defronte, porém distante, para que o fumo não se impregnasse na botina, e ficava em muda e arrebatada contemplação até alta noite.

Sobre aquela botina via elevar-se como sobre um pedestal, um vulto de estátua, mas vago, indistinto; e contudo esse esboço sem formas sedutoras, aquela sombra sem alma e sem calor, lhe parecia de uma beleza deslumbrante. Não era ela a mulher a que pertencia o mais formoso pé do mundo, o mimo, a obra-prima da natureza?

Recordava-se das mulheres mais bonitas que tinha visto, das mais lindas senhoras a quem amara com paixão, e sua memória as trazia todas, uma após outra, para as colocar ao lado daquela figura vaga e desvanecida, que planava sobre a almofada como sobre uma nuvem de ouro. Como elas fugiam abatidas e humilhadas diante de seu impetuoso desdém!

— Não são dignas, murmurava ele, nem de beijarem o chão pisado pela fada desta botina!

Eis qual tinha sido a vida de Horácio até o momento em que o vamos encontrar no mesmo lugar defronte da porta entreaberta do camarote. Laura percebeu-o afinal, e sorriu-lhe com ternura. A atenção do rei da moda era uma fineza, um ar de seu real agrado; cumpria-lhe agradecer.

Fitando com mais força o olhar na pupila da moça como para travar-lhe da vontade, Horácio abaixou lentamente esse olhar até a fímbria do vestido de chamalote com uma insistência significativa. Laura fez-se escarlate; e a porta do camarote, rapidamente fechada, a subtraiu às vistas ardentes do leão.

— É ela! exclamou o coração do mancebo afogado em júbilo. Não há dúvida. Para sentir esse pudor exagerado e incompreensível é preciso ter ali oculto um pé como aquele que eu sonhei. Um pé?...