Não; um mimo, uma maravilha, um tesouro, um céu!... É o pudor da violeta, que se esconde na sombra; é o pudor da pérola, oculta na concha; é o pudor do diamante, sumido no seio da terra; é o pudor da estrela, imergindo-se no azul.
O leão desceu as escadas murmurando:
— Vê-lo e morrer.
Pouco depois terminou o espetáculo. Amélia com um ressaibo de melancolia na fronte, embuçou-se na peliça e desceu. Ela perdera de vista Horácio, e só o tornara a ver parado em frente à porta do camarote de Laura. Desamparada pelo encanto do gentil mancebo, sofrera todo o resto do espetáculo o desassossego que lhe incutia o olhar de Leopoldo. Por mais que voltasse o rosto, sentia a fosforescência estranha desse olhar repulsivo, que entretanto a prendia, mau grado seu.
Leopoldo esperava no corredor da entrada a passagem da moça, quando avistou a seu lado Horácio. O leão sôfrego e impaciente volvia o olhar em várias direções; naturalmente procurava alguém, e receava que lhe escapasse.
— Adeus, Horácio.
— Boa noite, Leopoldo.
Amélia apareceu nesse momento.
— Conheces aquela moça, Horácio?
— Qual?... Espera!
Horácio tinha avistado Laura, que descia o lanço da escada oposta, e correra pressuroso, com os olhos fitos na fímbria de seda. Seu olhar tinha tal força que parecia um croque a levantar a orla do vestido. Debalde; nem a sombra do pé: o encorpado estofo arrastava pesadamente pelo chão.
Chegou a moça à porta, onde o carro a esperava. Horácio teve um vislumbre de esperança, porém nova decepção o esperava. Não viu mais do que uma nuvem de sedas ondular e sumir-se.
O leão fez um movimento de desespero.
— Senhor! por que em vez de homem não me fizeste estribo de um carro! Teria a felicidade de ser pisado por aquele pezinho.
VI
Seriam duas horas da tarde.
Durante a manhã tinha caído sobre a cidade uma forte neblina, que molhara as calçadas.
Leopoldo dirigia-se a casa pela Rua dos Ourives. Naturalmente vinha pensando na desconhecida que não vira desde a noite do teatro. Sua paixão era intensa e ardente; mas vivia de si mesma, nutria-se da própria seiva. Esperava com plena confiança de seu amor.
A pequena distância do canto da Rua do Ouvidor viu ele de repente a moça que passava na companhia de outras pessoas. Amélia voltara o rosto. Seu olhar cruzou rapidamente com o olhar do mancebo. Ela estremeceu com o costumado calafrio, e acelerou o passo.
Vendo-a sumir-se, encoberta pela esquina, o mancebo também se apressou para acompanhá-la; mas chegou tarde. A moça e as pessoas, que iam em sua companhia, acabavam de entrar em um carro: na elegante vitória que já conhecemos. Leopoldo apenas vira um pé, que na precipitação de subir, levantara demais a saia.
Sem consciência do que fazia, precipitou-se para a portinhola do carro. O lacaio que a fechava nesse momento, embargou-lhe o passo. Quando o carro partiu na direção de São Francisco de Paula, Amélia inclinou-se e lançou de esguelha um olhar vivo para a esquina.
Leopoldo ficara na calçada imóvel e extático de surpresa.
O pé que seus olhos descobriram, era uma enormidade, um monstro, um aleijão. Ao tamanho descomunal para uma senhora, juntava a disformidade. Pesado, chato, sem arqueação e perfil, parecia mais uma base, uma prancha, um tronco, do que um pé humano e sobretudo o pé de uma moça.
Os traços especiais da beleza de Amélia não tinham deixado na memória de Leopoldo a mínima impressão, da primeira vez que a vira, apesar de contemplá-la demoradamente. Entretanto o defeito não lhe escapou, embora passasse de relance diante de seus olhos.
Parece uma singularidade; mas não é. Ninguém conta as pétalas da flor que admira; ninguém repara na forma especial de cada uma das partes de que se compõe um todo gracioso; porém a menor mácula se destaca imediatamente.
É por isso que certos homens, não podendo distinguir-se entre a gente sisuda e honesta, fazem-se nódoas da sociedade; tornam-se vícios e torpezas. Assim adquirem a celebridade, que não obteriam com sua virtude ambígua e seu mesquinho talento.
O Castro, que não admirara o matiz da rosa, notou a mácula e desgostou-se dela. Ele sentia-se com forças para amar o feio e o desgracioso, mas não o disforme, o horrível. Essa aberração da figura humana, embora em um ponto só, lhe parecia o sintoma, senão o efeito, de uma monstruosidade moral.
Triste, acabrunhado por pensamentos acerbos, o moço continuou seu caminho pela Rua dos Ouvires em direção a casa. Mal havia andado alguns passos, arrependeu-se; não queria levar à sua habitação esse primeiro transbordamento de um dissabor tão profundo; era melhor deixá-lo escoar-se antes de recolher à solidão habitual.
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