Poemas de Álvaro de Campos

Poemas de Alvaro de Campos

Clássicos da literatura

Poemas de Álvaro de Campos

Fernando Pessoa

Fonte: http://www.secrel.com.br/jpoesia/facam.html

Maio 2013

Poemas

•   A Casa Branca Nau Preta

•   A Fernando Pessoa

•   A Frescura

•   A plácida face anônima de um morto.

•   A Praça

•   Acaso

•   Acordar

•   Adiamento

•   Afinal

•   Ah, Onde Estou

•   Ah, Perante

•   Ah, um Soneto…

•   Ali Não Havia

•   Aniversário

•   Ao Volante

•   Apontamento

•   Apostila

•   Às Vezes

•   Barrow-on-Furness

•   Bicarbonato de Soda

•   Chega Através

•   Clearly non-Campos!

•   Começa a Haver

•   Começo a conhecer-me. Não existo

•   Conclusão a sucata!… Fiz o cálculo

•   Contudo

•   Cruz na Porta

•   Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa

•   Datilografia

•   De la Musique

•   Demogorgon

•   Depus a Máscara

•   Desfraldando ao conjunto fictício dos céus estrelados

•   Dobrada à Moda do Porto

•   Dois Excertos de Odes

•   Domingo Irei

•   Encostei-me

•   Escrito Num Livro abandonado em Viagem

•   Esta Velha

•   Estou

•   Estou Cansado

•   Eu

•   Faróis

•   Gazetilha

•   Gostava

•   Grandes são os desertos, e tudo é deserto

•   Há Mais

•   Insônia

•   Là-bas, Je Ne Sais Où…

•   Lisboa

•   Lisbon Revisited (1923)

•   Lisbon Revisited (1926)

•   Magnificat

•   Marinetti Acadêmico

•   Mas Eu

•   Mestre

•   Na Casa Defronte

•   Na Noite Terrivel

•   Na Véspera

•   Não Estou

•   Não, não é cansaço…

•   Não: Devagar

•   Nas Praças

•   No Fim

•   No lugar dos palácios desertos

•   Nunca, por Mais

•   Nuvens

•   O Binômio de Newton

•   O Descalabro

•   O Esplendor

•   O Florir

•   O Frio Especial

•   O Mesmo

•   O Que Há

•   O Sono

•   O ter deveres, que prolixa coisa!

•   O Tumulto

•   Ode Marcial

•   Ode Marítima

•   Ode Triunfal

•   Opiário

•   Ora

•   Os Antigos

•   Passagem das Horas

•   Pecado Original

•   Poema em Linha Reta

•   Psiquetipia (Ou Psicitipia)

•   Quando

•   Que lindos olhos de azul inocente os do pequenito do agiota!

•   Que noite serena!

•   Quero Acabar

•   Realidade

•   Reticências

•   Saudação a Walt Whitman

•   Se te Queres

•   Símbolos

•   Soneto Já Antigo

•   Sou Eu

•   Tabacaria

•   Tenho

•   The Times

•   Todas as Cartas de Amor são Ridículas

•   Trapo

•   Um dia, no restaurante

•   Vai pelo cais fora um bulício de chegada próxima

•   Vilegiatura

Nota Preliminar

Um poema é a projeção de uma idéia em palavras através da emoção. A emoção não é a base da poesia: é tão-somente o meio de que a idéia se serve para se reduzir a palavras.

Não vejo, entre a poesia e a prosa, a diferença fundamental, peculiar da própria disposição da mente, que Campos estabelece. Desde que se usa de palavras, usa-se de um instrumento ao mesmo tempo emotivo e intelectual.

A palavra contém uma idéia e uma emoção. Por isso não há prosa, nem a mais rigidamente científica, que não ressume qualquer suco emotivo.

Por isso não há exclamação, nem a mais abstratamente emotiva, que não implique, ao menos, o esboço de uma idéia.

Poderá alegar-se, por exemplo, que a exclamação pura – “Ah”, digamos — não contém elemento algum intelectual. Mas não existe um “ah”, assim escrito isoladamente, sem relação com qualquer coisa de anterior. Ou consideramos o “ah” como falado e no tom da voz vai o sentimento que o anima, e portanto a idéia ligada à definição desse sentimento; ou o “ah” responde a qualquer frase, ou por ela se forma, e manifesta uma idéia que essa frase provocou.

Em tudo que se diz — poesia ou prosa — há idéia e emoção. A poesia difere da prosa apenas em que escolhe um novo meio exterior, além da palavra, para projetar a idéia em palavras através da emoção. Esse meio é o ritmo, a rima, a estrofe; ou todas, ou duas, ou uma só. Porém meno que uma só não creio que possa ser.

A idéia, ao servir-se da emoção para se exprimir em palavras, contorna e define essa emoção, e o ritmo, ou a rima, ou a estrofe, são a projeção desse contorno, a afirmação da idéia através de uma emoção, que, se a idéia a não contornasse, se extravasaria e perderia a própria capacidade de expressão.

É o que, em meu entender, sucede nos poemas de Campos. São um extravasar de emoção. A idéia serve a emoção, não a domina. E o homem — poeta ou não poeta — em quem a emoção domina a inteligência recua a feição do seu ser a estádios anteriores da evolução, em que as faculdades de inibição dormiam ainda no embrião da mente. Não pode ser que arte, que é um produto da cultura, ou seja do desenvolvimento supremo da consciência que o homem tem de si mesmo, seja tanto mais superior, quanto maior for a sua semelhança com as manifestações mentais que distinguem os estados inferiores da evolução cerebral.

A poesia é superior à prosa porque exprime, não um grau superior de emoção, mas, por contra, um grau superior do domínio dela, a subordinação do tumulto em que a emoção naturalmente se exprimiria (como verdadeiramente diz Campos) ao ritmo, à rima, à estrofe.

Como o estado mental, em que a poesia se forma, é, deveras, mais emotivo que aquele em que naturalmente se forma a prosa, há mister que ao estado poético se aplique uma disciplina mais dura que aquela [que] se emprega no estado prosaico da mente. E esses artifícios — o ritmo, a rima, a estrofe — são instrumentos de tal disciplina.

No sentido em que Campos diz que são artifícios o ritmo, a rima e a estrofe, se pode dizer que são artifícios: a vontade que corrige defeitos, a ordem que policia sociedades, a civilização que reduz os egoísmos à forma sociável.

Na prosa mais propriamente prosa — a prosa científica ou filosófica —, a que exprime diretamente idéias e só idéias, não há mister de grande disciplina, pois na própria circunstância de ser só de idéias vai disciplina bastante. Na prosa mais largamente emotiva, como a que distingue a oratória, ou tem feição descritiva, há que atender mais ao ritmo, à disposição, à organização das idéias, pois essas são ali em menor número, nem formam o fundamento da matéria. Na prosa amplamente emotiva — aquela cujos sentimentos poderiam com igual facilidade ser expostos em poesia — há que atender mais que nunca à disposição da matéria, e ao ritmo que acompanhe a exposição. Esse ritmo não é definido, como o é no verso, porque a prosa não é verso. O que verdadeiramente Campos faz, quando escreve em verso, é escrever prosa ritmada com pausas maiores marcadas em certos pontos, para fins rítmicos, e esses pontos de pausa maior, determina-os ele pelos fins dos versos. Campos é um grande prosador, um prosador com uma grande ciência do ritmo; mas o ritmo de que tem ciência, é o ritmo da prosa, e a prosa de que se serve é aquela em que se introduziu, além dos vulgares sinais de pontuação, uma pausa maior e especial, que Campos, como os seus pares anteriores e semelhantes, determinou representar graficamente pela linha quebrada no fim, pela linha disposta como o que se chama um verso. Se Campos, em vez de fazer tal, inventasse um sinal novo de pontuação — digamos o traço vertical (|) — para determinar esta ordem de pausa, ficando nós sabendo que ali se pausava com o mesmo gênero de pausa com que se pausa no fim de um verso, não faria obra diferente, nem estabeleceria a confusão que estabeleceu.

A disciplina é natural ou artificial, espontânea ou refletida. O que distingue a arte clássica, propriamente dita, a dos gregos e até dos romanos, da arte pseudoclássica, como a dos franceses em seus séculos de fixação, é que a disciplina de uma está nas mesmas emoções, com uma harmonia natural da alma, que naturalmente repele o excessivo, ainda ao senti-lo; e a disciplina da outra está em uma deliberação da mente de não se deixar sentir para cima de certo nível. A arte pseudoclássica é fria porque é uma regra; a clássica tem emoção porque é uma harmonia.

Quase se conclui do que diz Campos, de que o poeta vulgar sente espontaneamente com a largueza que naturalmente projetaria em versos como os que ele escreve; e depois, refletindo, sujeita essa emoção a cortes e retoques e outras mutilações ou alterações, em obediência a uma regra exterior. Nenhum homem foi alguma vez poeta assim. A disciplina do ritmo é aprendida até fícar sendo uma parte da alma: o verso que a emoção produz nasce já subordinado a essa disciplina. Uma emoção naturalmente harmônica é uma emoção naturalmente ordenada; uma emoção naturalmente ordenada é uma emoção naturalmente traduzida num ritmo ordenado, pois a emoção dá o ritmo e a ordem que há nela, a ordem que no ritmo há.

Na palavra, a inteligência dá a frase, a emoção o ritmo. Quando o pensamento do poeta é alto, isto é, formado de uma idéia que produz uma emoção, esse pensamento, já de si harmônico pela junção equilibrada de idéia e emoção, e pela nobreza de ambas, transmite esse equilíbrio de emoção e de sentimento à frase e ao ritmo, e assim, como disse, a frase, súdita do pensamento que a define, busca-o, e o ritmo, escravo da emoção que esse pensamento agregou a si, o serve.

A Casa Branca Nau Preta

Estou reclinado na poltrona, é tarde, o Verão apagou-se…

Nem sonho, nem cismo, um torpor alastra em meu cérebro…

Não existe manhã para o meu torpor nesta hora…

Ontem foi um mau sonho que alguém teve por mim…

Há uma interrupção lateral na minha consciência…

Continuam encostadas as portas da janela desta tarde

Apesar de as janelas estarem abertas de par em par…

Sigo sem atenção as minhas sensações sem nexo,

E a personalidade que tenho está entre o corpo e a alma…

Quem dera que houvesse

Um terceiro estado pra alma, se ela tiver só dois…

Um quarto estado pra alma, se são três os que ela tem…

A impossibilidade de tudo quanto eu nem chego a sonhar

Dói-me por detrás das costas da minha consciência de sentir…

As naus seguiram,

Seguiram viagem não sei em que dia escondido,

E a rota que devem seguir estava escrita nos ritmos,

Os ritmos perdidos das canções mortas do marinheiro de sonho…

Árvores paradas da quinta, vistas através da janela,

Árvores estranhas a mim a um ponto inconcebível à consciência de as estar vendo,

Árvores iguais todas a não serem mais que eu vê-las,

Não poder eu fazer qualquer coisa gênero haver árvores que deixasse de doer,

Não poder eu coexistir para o lado de lá com estar-vos vendo do lado de cá.

E poder levantar-me desta poltrona deixando os sonhos no chão…

Que sonhos? … Eu não sei se sonhei … Que naus partiram, para onde?

Tive essa impressão sem nexo porque no quadro fronteira

Naus partem — naus não, barcos, mas as naus estão em mim,

E é sempre melhor o impreciso que embala do que o certo que basta,

Porque o que basta acaba onde basta, e onde acaba não basta,

E nada que se pareça com isto devia ser o sentido da vida…

Quem pôs as formas das árvores dentro da existência das árvores?

Quem deu frondoso a arvoredos, e me deixou por verdecer?

Onde tenho o meu pensamento que me dói estar sem ele,

Sentir sem auxílio de poder para quando quiser, e o mar alto

E a última viagem, sempre para lá, das naus a subir…

Não há, substância de pensamento na matéria de alma com que penso …

Há só janelas abertas de par em par encostadas por causa do calor que já não faz,

E o quintal cheio de luz sem luz agora ainda-agora, e eu.

Na vidraça aberta, fronteira ao ângulo com que o meu olhar a colhe

A casa branca distante onde mora… Fecho o olhar…

E os meus olhos fitos na casa branca sem a ver

São outros olhos vendo sem estar fitos nela a nau que se afasta.

E eu, parado, mole, adormecido,

Tenho o mar embalando-me e sofro…

Aos próprios palácios distantes a nau que penso não leva.

As escadas dando sobre o mar inatingível ela não alberga.

Aos jardins maravilhosos nas ilhas inexplícitas não deixa.

Tudo perde o sentido com que o abrigo em meu pórtico

E o mar entra por os meus olhos o pórtico cessando.

Caia a noite, não caia a noite, que importa a candeia

Por acender nas casas que não vejo na encosta e eu lá?

Úmida sombra nos sons do tanque noturna sem lua, as rãs rangem,

Coaxar tarde no vale, porque tudo é vale onde o som dói.

Milagre do aparecimento da Senhora das Angústias aos loucos,

Maravilha do enegrecimento do punhal tirado para os atos,

Os olhos fechados, a cabeça pendida contra a coluna certa,

E o mundo para além dos vitrais paisagem sem ruínas…

A casa branca nau preta…

Felicidade na Austrália…

A Fernando Pessoa

(Depois de ler seu drama estático “O marinheiro” em “Orfeu I”)

Depois de doze minutos

Do seu drama O Marinheiro,

Em que os mais ágeis e astutos

Se sentem com sono e brutos,

E de sentido nem cheiro,

Diz rima das veladoras

Com langorosa magia

De eterno e belo há apenas o sonho.

Por que estamos nós falando ainda?

Ora isso mesmo é que eu ia

Perguntar a essas senhoras…

A Frescura

Ah a frescura na face de não cumprir um dever!

Faltar é positivamente estar no campo!

Que refúgio o não se poder ter confiança em nós!

Respiro melhor agora que passaram as horas dos encontros,

Faltei a todos, com uma deliberação do desleixo,

Fiquei esperando a vontade de ir para lá, que’eu saberia que não vinha.

Sou livre, contra a sociedade organizada e vestida.

Estou nu, e mergulho na água da minha imaginação.

E tarde para eu estar em qualquer dos dois pontos onde estaria à mesma hora,

Deliberadamente à mesma hora…

Está bem, ficarei aqui sonhando versos e sorrindo em itálico.

É tão engraçada esta parte assistente da vida!

Até não consigo acender o cigarro seguinte… Se é um gesto,

Fique com os outros, que me esperam, no desencontro que é a vida.

A plácida face anônima de um morto.

A plácida face anônima de um morto.

Assim os antigos marinheiros portugueses,

Que temeram, seguindo contudo, o mar grande do Fim,

Viram, afinal, não monstros nem grandes abismos,

Mas praias maravilhosas e estrelas por ver ainda.

O que é que os taipais do mundo escondem nas montras de Deus?

A Praça

A praça da Figueira de manhã,

Quando o dia é de sol (como acontece

Sempre em Lisboa), nunca em mim esquece,

Embora seja uma memória vã.

Há tanta coisa mais interessante

Que aquele lugar lógico e plebeu,

Mas amo aquilo, mesmo aqui … Sei eu

Por que o amo? Não importa. Adiante …

Isto de sensações só vale a pena

Se a gente se não põe a olhar para elas.

Nenhuma delas em mim serena…

De resto, nada em mim é certo e está

De acordo comigo próprio. As horas belas

São as dos outros ou as que não há.

Acaso

No acaso da rua o acaso da rapariga loira.

Mas não, não é aquela.

A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.

Perco-me subitamente da visão imediata,

Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,

E a outra rapariga passa.

Que grande vantagem o recordar intransigentemente!

Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,

E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta.

Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!

Ao menos escrevem-se versos.

Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por gênio, se calhar,

Se calhar, ou até sem calhar,

Maravilha das celebridades!

Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos…

Mas isto era a respeito de uma rapariga,

De uma rapariga loira,

Mas qual delas?

Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade,

Numa outra espécie de rua;

E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade

Numa outra espécie de rua;

Por que todas as recordações são a mesma recordação,

Tudo que foi é a mesma morte,

Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã?

Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional.

Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas?

Pode ser… A rapariga loira?

É a mesma afinal…

Tudo é o mesmo afinal …

Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isto é o mesmo também afinal.

Acordar

Acordar da cidade de Lisboa, mais tarde do que as outras,

Acordar da Rua do Ouro,

Acordar do Rocio, às portas dos cafés,

Acordar

E no meio de tudo a gare, que nunca dorme,

Como um coração que tem que pulsar através da vigília e do sono.

Toda a manhã que raia, raia sempre no mesmo lugar,

Não há manhãs sobre cidades, ou manhãs sobre o campo.

À hora em que o dia raia, em que a luz estremece a erguer-se

Todos os lugares são o mesmo lugar, todas as terras são a mesma,

E é eterna e de todos os lugares a frescura que sobe por tudo.

Uma espiritualidade feita com a nossa própria carne,

Um alívio de viver de que o nosso corpo partilha,

Um entusiasmo por o dia que vai vir, uma alegria por o que pode acontecer de bom,

São os sentimentos que nascem de estar olhando para a madrugada,

Seja ela a leve senhora dos cumes dos montes,

Seja ela a invasora lenta das ruas das cidades que vão leste-oeste,

Seja

A mulher que chora baixinho

Entre o ruído da multidão em vivas…

O vendedor de ruas, que tem um pregão esquisito,

Cheio de individualidade para quem repara…

O arcanjo isolado, escultura numa catedral,

Siringe fugindo aos braços estendidos de Pã,

Tudo isto tende para o mesmo centro,

Busca encontrar-se e fundir-se

Na minha alma.

Eu adoro todas as coisas

E o meu coração é um albergue aberto toda a noite.

Tenho pela vida um interesse ávido

Que busca compreendê-la sentindo-a muito.

Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo,

Aos homens e às pedras, às almas e às máquinas,

Para aumentar com isso a minha personalidade.

Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim próprio

E a minha ambição era trazer o universo ao colo

Como uma criança a quem a ama beija.

Eu amo todas as coisas, umas mais do que as outras,

Não nenhuma mais do que outra, mas sempre mais as que estou vendo

Do que as que vi ou verei.

Nada para mim é tão belo como o movimento e as sensações.

A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos.

Penso nisto, enterneço-me mas não sossego nunca.

Dá-me lírios, lírios

E rosas também.

Dá-me rosas, rosas,

E lírios também,

Crisântemos, dálias,

Violetas, e os girassóis

Acima de todas as flores…

Deita-me as mancheias,

Por cima da alma,

Dá-me rosas, rosas,

E lírios também…

Meu coração chora

Na sombra dos parques,

Não tem quem o console

Verdadeiramente,

Exceto a própria sombra dos parques

Entrando-me na alma,

Através do pranto.

Dá-me rosas, rosas,

E llrios também…

Minha dor é velha

Como um frasco de essência cheio de pó.

Minha dor é inútil

Como uma gaiola numa terra onde não há aves,

E minha dor é silenciosa e triste

Como a parte da praia onde o mar não chega.

Chego às janelas

Dos palác ios arruinados

E cismo de dentro para fora

Para me consolar do presente.

Dá-me rosas, rosas,

E lírios também…

Mas por mais rosas e lírios que me dês,

Eu nunca acharei que a vida é bastante.

Faltar-me-á sempre qualquer coisa,

Sobrar-me-á sempre de que desejar,

Como um palco deserto.

Por isso, não te importes com o que eu penso,

E muito embora o que eu te peça

Te pareça que não quer dizer nada,

Minha pobre criança tísica,

Dá-me das tuas rosas e dos teus lírios,

Dá-me rosas, rosas,

E lírios também..

Adiamento

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã…

Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,

E assim será possível; mas hoje não…

Não, hoje nada; hoje não posso.

A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,

O sono da minha vida real, intercalado,

O cansaço antecipado e infinito,

Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico…

Esta espécie de alma…

Só depois de amanhã…

Hoje quero preparar-me,

Quero preparar-rne para pensar amanhã no dia seguinte…

Ele é que é decisivo.

Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos…

Amanhã é o dia dos planos.

Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o rnundo;

Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã…

Tenho vontade de chorar,

Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro…

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.

Só depois de amanhã…

Quando era criança o circo de domingo divertia-rne toda a semana.

Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância…

Depois de amanhã serei outro,

A minha vida triunfar-se-á,

Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático

Serão convocadas por um edital…

Mas por um edital de amanhã…

Hoje quero dormir, redigirei amanhã…

Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?

Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,

Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo…

Antes, não…

Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.

Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.

Só depois de amanhã…

Tenho sono como o frio de um cão vadio.

Tenho muito sono.

Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã…

Sim, talvez só depois de amanhã…

O porvir…

Sim, o porvir…

Afinal

Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.

Sentir tudo de todas as maneiras.

Sentir tudo excessivamente,

Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas

E toda a realidade é um excesso, uma violência,

Uma alucinação extraordinariamente nítida

Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,

O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas

Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos.

Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,

Quanto mais personalidade eu tiver,

Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,

Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,

Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,

Estiver, sentir, viver, for,

Mais possuirei a existência total do universo,

Mais completo serei pelo espaço inteiro fora.

Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for,

Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo,

E fora d’Ele há só Ele, e Tudo para Ele é pouco.

Cada alma é uma escada para Deus,

Cada alma é um corredor-Universo para Deus,

Cada alma é um rio correndo por margens de Externo

Para Deus e em Deus com um sussurro soturno.

Sursum corda! Erguei as almas! Toda a Matéria é Espírito,

Porque Matéria e Espírito são apenas nomes confusos

Dados à grande sombra que ensopa o Exterior em sonho

E funde em Noite e Mistério o Universo Excessivo!

Sursum corda! Na noite acordo, o silêncio é grande,

As coisas, de braços cruzados sobre o peito, reparam

Com uma tristeza nobre para os meus olhos abertos

Que as vê como vagos vultos noturnos na noite negra.

Sursum corda! Acordo na noite e sinto-me diverso.

Todo o Mundo com a sua forma visível do costume

Jaz no fundo dum poço e faz um ruído confuso,

Escuto-o, e no meu coração um grande pasmo soluça.

Sursum corda! ó Terra, jardim suspenso, berço

Que embala a Alma dispersa da humanidade sucessiva!

Mãe verde e florida todos os anos recente,

Todos os anos vernal, estival, outonal, hiemal,

Todos os anos celebrando às mancheias as festas de Adônis

Num rito anterior a todas as significações,

Num grande culto em tumulto pelas montanhas e os vales!

Grande coração pulsando no peito nu dos vulcões,

Grande voz acordando em cataratas e mares,

Grande bacante ébria do Movimento e da Mudança,

Em cio de vegetação e florescência rompendo

Teu próprio corpo de terra e rochas, teu corpo submisso

A tua própria vontade transtornadora e eterna!

Mãe carinhosa e unânime dos ventos, dos mares, dos prados,

Vertiginosa mãe dos vendavais e ciclones,

Mãe caprichosa que faz vegetar e secar,

Que perturba as próprias estações e confunde

Num beijo imaterial os sóis e as chuvas e os ventos!

Sursum corda! Reparo para ti e todo eu sou um hino!

Tudo em mim como um satélite da tua dinâmica intima

Volteia serpenteando, ficando como um anel

Nevoento, de sensações reminescidas e vagas,

Em torno ao teu vulto interno, túrgido e fervoroso.

Ocupa de toda a tua força e de todo o teu poder quente

Meu coração a ti aberto!

Como uma espada traspassando meu ser erguido e extático,

Intersecciona com meu sangue, com a minha pele e os meus nervos,

Teu movimento contínuo, contíguo a ti própria sempre,

Sou um monte confuso de forças cheias de infinito

Tendendo em todas as direções para todos os lados do espaço,

A Vida, essa coisa enorme, é que prende tudo e tudo une

E faz com que todas as forças que raivam dentro de mim

Não passem de mim, nem quebrem meu ser, não partam meu corpo,

Não me arremessem, como uma bomba de Espírito que estoira

Em sangue e carne e alma espiritualizados para entre as estrelas,

Para além dos sóis de outros sistemas e dos astros remotos.

Tudo o que há dentro de mim tende a voltar a ser tudo.

Tudo o que há dentro de mim tende a despejar-me no chão,

No vasto chão supremo que não está em cima nem embaixo

Mas sob as estrelas e os sóis, sob as almas e os corpos

Por uma oblíqua posse dos nossos sentidos intelectuais.

Sou uma chama ascendendo, mas ascendo para baixo e para cima,

Ascendo para todos os lados ao mesmo tempo, sou um globo

De chamas explosivas buscando Deus e queimando

A crosta dos meus sentidos, o muro da minha lógica,

A minha inteligência limitadora e gelada.

Sou uma grande máquina movida por grandes correias

De que só vejo a parte que pega nos meus tambores,

O resto vai para além dos astros, passa para além dos sóis,

E nunca parece chegar ao tambor donde parte …

Meu corpo é um centro dum volante estupendo e infinito

Em marcha sempre vertiginosamente em torno de si,

Cruzando-se em todas as direções com outros volantes,

Que se entrepenetram e misturam, porque isto não é no espaço

Mas não sei onde espacial de uma outra maneira-Deus.

Dentro de mim estão presos e atados ao chao

Todos os movimentos que compõem o universo,

A fúria minuciosa e dos átomos,

A fúria de todas as chamas, a raiva de todos os ventos,

A espuma furiosa de todos os rios, que se precipitam,

A chuva com pedras atiradas de catapultas

De enormes exércitos de anões escondidos no céu.

Sou um formidável dinamismo obrigado ao equilíbrio

De estar dentro do meu corpo, de não transbordar da minh’alma.

Ruge, estoira, vence, quebra, estrondeia, sacode,

Freme, treme, espuma, venta, viola, explode,

Perde-te, transcende-te, circunda-te, vive-te, rompe e foge,

Sê com todo o meu corpo todo o universo e a vida,

Arde com todo o meu ser todos os lumes e luzes,

Risca com toda a minha alma todos os relâmpagos e fogos,

Sobrevive-me em minha vida em todas as direções!

Ah, Onde Estou

Ah, onde estou onde passo, ou onde não estou nem passo,

A banalidade devorante das caras de toda a gente!

Ah, a angústia insuportável de gente!

O cansaço inconvertível de ver e ouvir!

(Murmúrio outrora de regatos próprios, de arvoredo meu.)

Queria vomitar o que vi, só da náusea de o ter visto,

Estômago da alma alvorotado de eu ser…

Ah, Perante

Ah, perante esta única realidade, que é o mistério,

Perante esta única realidade terrível — a de haver uma realidade,

Perante este horrível ser que é haver ser,

Perante este abismo de existir um abismo,

Este abismo de a existência de tudo ser um abismo,

Ser um abismo por simplesmente ser,

Por poder ser,

Por haver ser!

— Perante isto tudo como tudo o que os homens fazem,

Tudo o que os homens dizem,

Tudo quanto constroem, desfazem ou se constrói ou desfaz através deles,

Se empequena!

Não, não se empequena… se transforma em outra coisa —

Numa só coisa tremenda e negra e impossível,

Urna coisa que está para além dos deuses, de Deus, do Destino

—Aquilo que faz que haja deuses e Deus e Destino,

Aquilo que faz que haja ser para que possa haver seres,

Aquilo que subsiste através de todas as formas,

De todas as vidas, abstratas ou concretas,

Eternas ou contingentes,

Verdadeiras ou falsas!

Aquilo que, quando se abrangeu tudo, ainda ficou fora,

Porque quando se abrangeu tudo não se abrangeu explicar por que é um tudo,

Por que há qualquer coisa, por que há qualquer coisa, por que há qualquer coisa!

Minha inteligência tornou-se um coração cheio de pavor,

E é com minhas idéias que tremo, com a minha consciência de mim,

Com a substância essencial do meu ser abstrato

Que sufoco de incompreensível,

Que me esmago de ultratranscendente,

E deste medo, desta angústia, deste perigo do ultra-ser,

Não se pode fugir, não se pode fugir, não se pode fugir!

Cárcere do Ser, não há libertação de ti?

Cárcere de pensar, não há libertação de ti?

Ah, não, nenhuma — nem morte, nem vida, nem Deus!

Nós, irmãos gêmeos do Destino em ambos existirmos,

Nós, irmãos gêmeos dos Deuses todos, de toda a espécie,

Em sermos o mesmo abismo, em sermos a mesma sombra,

Sombra sejamos, ou sejamos luz, sempre a mesma noite.

Ah, se afronto confiado a vida, a incerteza da sorte,

Sorridente, impensando, a possibilidade quotidiana de todos os males,

Inconsciente o mistério de todas as coisas e de todos os gestos,

Por que não afrontarei sorridente, inconsciente, a Morte?

Ignoro-a? Mas que é que eu não ignoro?

A pena em que pego, a letra que escrevo, o papel em que escrevo,

São mistérios menores que a Morte? Como se tudo é o mesmo mistério?

E eu escrevo, estou escrevendo, por uma necessidade sem nada.

Ah, afronte eu como um bicho a morte que ele não sabe que existe!

Tenho eu a inconsciência profunda de todas as coisas naturais,

Pois, por mais consciência que tenha, tudo é inconsciência,

Salvo o ter criado tudo, e o ter criado tudo ainda é inconsciência,

Porque é preciso existir para se criar tudo,

E existir é ser inconsciente, porque existir é ser possível haver ser,

E ser possível haver ser é maior que todos os Deuses.

Ah, um Soneto…

Meu coração é um almirante louco

que abandonou a profissão do mar

e que a vai relembrando pouco a pouco

em casa a passear, a passear …

No movimento (eu mesmo me desloco

nesta cadeira, só de o imaginar)

o mar abandonado fica em foco

nos músculos cansados de parar.

Há saudades nas pernas e nos braços.

Há saudades no cérebro por fora.

Há grandes raivas feitas de cansaços.

Mas — esta é boa! — era do coração

que eu falava… e onde diabo estou eu agora

com almirante em vez de sensação? …

Ali Não Havia

Ali não havia eletricidade.

Por isso foi à luz de uma vela mortiça

Que li, inserto na cama,

O que estava à mão para ler —

A Bíblia, em português (coisa curiosa), feita para protestantes.

E reli a “Primeira Epístola aos Coríntios”.

Em torno de mim o sossego excessivo de noite de províncial

Fazia um grande barulho ao contrário,

Dava-me uma tendência do choro para a desolação.

A “Primeira Epístola aos Coríntios” …

Relia-a à luz de uma vela subitamente antiqüíssima,

E um grande mar de emoção ouvia-se dentro de mim…

Sou nada…

Sou uma ficção…

Que ando eu a querer de mim ou de tudo neste mundo?

“Se eu não tivesse a caridade.”

E a soberana luz manda, e do alto dos séculos,

A grande mensagem com que a alma é livre…

“Se eu não tivesse a caridade…”

Meu Deus, e eu que não tenho a caridade! …

Aniversário

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu era feliz e ninguém estava morto.

Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,

E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,

De ser inteligente para entre a família,

E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.

Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.

Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,

O que fui de coração e parentesco.

O que fui de serões de meia-província,

O que fui de amarem-me e eu ser menino,

O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui…

A que distância!…

(Nem o acho… )

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,

Pondo grelado nas paredes…

O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),

O que eu sou hoje é terem vendido a casa,

É terem morrido todos,

É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio…

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos …

Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!

Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,

Por uma viagem metafísica e carnal,

Com uma dualidade de eu para mim…

Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui…

A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,

O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,

As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos…

Pára, meu coração!

Não penses! Deixa o pensar na cabeça!

Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!

Hoje já não faço anos.

Duro.

Somam-se-me dias.

Serei velho quando o for.

Mais nada.

Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! …

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!…

Ao Volante

Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,

Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,

Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco

Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,

Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,

Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,

Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir?

Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,

Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.

Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem conseqüência,

Sempre, sempre, sempre,

Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,

Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida…

Maieável aos meus movimentos subconscientes do volante,

Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.

Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.

Em quantas coisas que me emprestaram eu sigo no mundo

Quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!

Quanto me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!

À esquerda o casebre — sim, o casebre — à beira da estrada

À direita o campo aberto, com a lua ao longe.

O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,

É agora uma coisa onde estou fechado

Que só posso conduzir se nele estiver fechado,

Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.

À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.

A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.

Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz.

Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar que está em cima

Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real.

Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha

No pavimento térreo,

Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga,

E ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que me perdi.

Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?

Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel emprestado que eu guio?

Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite,

Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente,

Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço,

E, num desejo terrível, súbido, violento, inconcebível,

Acelero…

Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo sem vê-lo,

À porta do casebre,

O meu coração vazio,

O meu coração insatisfeito,

O meu coração mais humano do que eu, mais exato que a vida.

Na estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao votante,

Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,

Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,

Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim…

Apontamento

A minha alma partiu-se como um vaso vazio.

Caiu pela escada excessivamente abaixo.

Caiu das mãos da criada descuidada.

Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.

Asneira? Impossível? Sei lá!

Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.

Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.

Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.

Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada.

E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.

Não se zanguem com ela.

São tolerantes com ela.

O que era eu um vaso vazio?

Olham os cacos absurdamente conscientes,

Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles.

Olham e sorriem.

Sorriem tolerantes à criada involuntária.

Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.

Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.

A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?

Um caco.

E os deuses olham-o especialmente, pois não sabem por que ficou ali.

Apostila (11-4-1928)

Aproveitar o tempo!

Mas o que é o tempo, que eu o aproveite?

Aproveitar o tempo!

Nenhum dia sem linha…

O trabalho honesto e superior…

O trabalho à Virgílio, à Mílton…

Mas é tão difícil ser honesto ou superior!

É tão pouco provável ser Milton ou ser Virgílio!

Aproveitar o tempo!

Tirar da alma os bocados precisos - nem mais nem menos -

Para com eles juntar os cubos ajustados

Que fazem gravuras certas na história

(E estão certas também do lado de baixo que se não vê)…

Pôr as sensações em castelo de cartas, pobre China dos serões,

E os pensamentos em dominó, igual contra igual,

E a vontade em carambola difícil.

Imagens de jogos ou de paciências ou de passatempos -

Imagens da vida, imagens das vidas. Imagens da Vida.

Verbalismo…

Sim, verbalismo…

Aproveitar o tempo!

Não ter um minuto que o exame de consciência desconheça…

Não ter um acto indefinido nem factício…

Não ter um movimento desconforme com propósitos…

Boas maneiras da alma…

Elegância de persistir…

Aproveitar o tempo!

Meu coração está cansado como mendigo verdadeiro.

Meu cérebro está pronto como um fardo posto ao canto.

Meu canto (verbalismo!) está tal como está e é triste.

Aproveitar o tempo!

Desde que comecei a escrever passaram cinco minutos.

Aproveitei-os ou não?

Se não sei se os aproveitei, que saberei de outros minutos?!

(Passageira que viajaras tantas vezes no mesmo compartimento comigo

No comboio suburbano,

Chegaste a interessar-te por mim?

Aproveitei o tempo olhando para ti?

Qual foi o ritmo do nosso sossego no comboio andante?

Qual foi o entendimento que não chegámos a ter?

Qual foi a vida que houve nisto? Que foi isto a vida?)

Aproveitar o tempo!

Ah, deixem-me não aproveitar nada!

Nem tempo, nem ser, nem memórias de tempo ou de ser!…

Deixem-me ser uma folha de árvore, titilada por brisa,

A poeira de uma estrada involuntária e sozinha,

O vinco deixado na estrada pelas rodas enquanto não vêm outras,

O pião do garoto, que vai a parar,

E oscila, no mesmo movimento que o da alma,

E cai, como caem os deuses, no chão do Destino.

Às Vezes

Às vezes tenho idéias felizes,

Idéias subitamente felizes, em idéias

E nas palavras em que naturalmente se despegam…

Depois de escrever, leio…

Por que escrevi isto?

Onde fui buscar isto?

De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu…

Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta

Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?…

Barrow-on-Furness

I

Sou vil, sou reles, como toda a gente

Não tenho ideais, mas não os tem ninguém.

Quem diz que os tem é como eu, mas mente.

Quem diz que busca é porque não os tem.

É com a imaginação que eu amo o bem.

Meu baixo ser porém não mo consente.

Passo, fantasma do meu ser presente,

Ébrio, por intervalos, de um Além.

Como todos não creio no que creio.

Talvez possa morrer por esse ideal.

Mas, enquanto não morro, falo c leio.

Justificar-me? Sou quem todos são…

Modificar-me? Para meu igual?…

— Acaba lá com isso, ó coração!

II

Deuses, forças, almas de ciência ou fé,

Eh! Tanta explicação que nada explica!

Estou sentado no cais, numa barrica,

E não compreendo mais do que de pé.

Por que o havia de compreender?

Pois sim, mas também por que o não havia?

Águia do rio, correndo suja e fria,

Eu passo como tu, sem mais valer…

Ó universo, novelo emaranhado,

Que paciência de dedos de quem pensa

Em outras cousa te põe separado?

Deixa de ser novelo o que nos fica…

A que brincar? Ao amor?, à indif’rença?

Por mim, só me levanto da barrica.

III

Corre, raio de rio, e leva ao mar

A minha indiferença subjetiva!

Qual “leva ao mar”! Tua presença esquiva

Que tem comigo e com o meu pensar?

Lesma de sorte! Vivo a cavalgar

A sombra de um jumento.