É ali, ali,

Que a vida é jovem e o amor sorri.

 

 

20/08/1933

 


Ouço, como se o cheiro

De flores me acordasse...

É música – um canteiro

De influência e disfarce.

 

Impalpável lembrança,

Sorriso de ninguém,

Com aquela esperança

Que nem esperança tem...

 

Que importa, se sentir

É não se conhecer?

Ouço, e sinto sorrir

O que em mim nada quer.

 

 

21/08/1933


Nuvens sobre a floresta...

Sombra com sombra a mais...

Minha tristeza é esta –

A das coisas reais.

 

A outra, a que pertence

Aos sonhos que perdi,

Nesta hora não me vence,

Se a há, não a há aqui.

 

Mas esta, a do arvoredo

Que o céu sem luz invade,

Faz-me receio e medo...

Quem foi minha saudade?

 

 

21/08/1933


Aqui onde se espera

– Sossego, só sossego –

Isso que outrora era,

 

Aqui onde, dormindo,

– Sossego, só sossego –

Se sente a noite vindo,

 

E nada importaria

– Sossego, só sossego –

Que fosse antes o dia,

 

Aqui, aqui estarei

– Sossego, só sossego –

Como no exílio um rei,

 

Gozando da ventura

– Sossego, só sossego –

De não ter a amargura

 

De reinar, mas guardando

– Sossego, só sossego –

O nome venerando...

 

Que mais quer quem descansa

– Sossego, só sossego –

Da dor e da esperança,

 

Que ter a negação

– Sossego, só sossego –

De todo o coração?

 

 

31/08/1933


Redemoinha o vento,

Anda à roda o ar.

Vai meu pensamento

Comigo a sonhar.

 

Vai saber na altura

Como no arvoredo

Se sente a frescura

Passar alta a medo.

 

Vai saber de eu ser

Aquilo que eu quis

Quando ouvi dizer

O que o vento diz.

 

 

01/09/1933


Momento impercetível,

Que coisa foste, que há

Já em mim qualquer coisa

Que nunca passará?

 

Sei que, passados anos,

O que isto é lembrarei,

Sem saber já o era,

Que até já o não sei.

 

Mas, nada só que fosse,

Fica dele um ficar

Que será suave ainda

Quando eu o não lembrar.

 

 

05/09/1933


Vai alto pela folhagem

Um rumor de pertencer,

Como se houvesse na aragem

Uma razão de querer.

 

Mas, sim, é como se o som

Do vento no arvoredo

Tivesse um intuito, ou bom

Ou mau, mas feito em segredo,

 

E que, pensando no abismo

Onde os ventos são ninguém,

Subisse até onde cismo,

E, alto, alado, num vaivém

 

De tormenta comovesse

As árvores agitadas

Até que delas me viesse

Este mau conto de fadas.

 

 

05/09/1933


Quando as crianças brincam

E eu as ouço brincar,

Qualquer coisa em minha alma

Começa a se alegrar

 

E toda aquela infância

Que não tive me vem,

Numa onda de alegria

Que não foi de ninguém.

 

Se quem fui é enigma,

E quem serei visão,

Quem sou ao menos sinta

Isto no meu coração.

 

 

05/09/1933


Passos tardam na relva

Entre o luar e o luar,

Tudo é eflúvio e selva.

Sente-se alguém passar.

 

Passa, pisando leve

O chão que o luar desmente,

Num pálido hausto leve

De pisar levemente.

 

É elfo, é gnomo, é fada

A forma que ninguém vê?

Lembro: não houve nada.

Sinto, e a saudade crê.

 

 

05/09/1933


O que me dói não é

O que há no coração

Mas essas coisas lindas

Que nunca existirão...

 

São as formas sem forma

Que passam sem que a dor

As possa conhecer

Ou as sonhar o amor.

 

São como se a tristeza

Fosse árvore e, uma a uma,

Caíssem suas folhas

Entre o vestígio e a bruma.

 

 

05/09/1933


Porque é que um sono agita

Em vez de repousar

O que em minha alma habita

E a faz não descansar?

 

Que externa sonolência,

Que absurda confusão,

Mas oprime sem violência,

Me faz ver sem visão?

 

Entre o que vivo e a vida,

Entre quem estou e sou,

Durmo numa descida,

Descida em que não vou.

 

E, num fiel regresso

Ao que já era bruma,

Sonolento me apresso

Para coisa nenhuma.

 

 

06/09/1933


Contemplo o que não vejo.

É tarde, é quase escuro,

E quando em mim desejo

Está parado ante o muro.

 

Por cima o céu é grande;

Sinto árvores além;

Embora o vento abrande,

Há folhas em vaivém.

 

Tudo é do outro lado,

No que há e no que penso.

Nem há ramo agitado

Que o céu não seja imenso.

 

Confunde-se o que existe

Com o que durmo e sou.

Não sinto, não sou triste,

Mas triste é o que estou.

 

 

07/09/1933


Entre o sono e o sonho,

Entre mim e o que em mim

É o quem eu me suponho,

Corre um rio sem fim.

 

Passou por outras margens,

Diversas mais além,

Naquelas várias viagens

Que todo o rio tem.

 

Chegou onde hoje habito

A casa que hoje sou.

Passa, se eu me medito;

Se desperto, passou.

 

E quem me sinto e morre

No que me liga a mim

Dorme onde o rio corre –

Esse rio sem fim.

 

 

11/09/1933


A morte chega cedo,

Pois breve é toda vida

O instante é o arremedo

De uma coisa perdida.

 

O amor foi começado,

O ideal não acabou,

E quem tenha alcançado

Não sabe o que alcançou.

 

E a tudo isto a morte

Risca por não estar certo

No caderno da sorte

Que Deus deixou aberto.

 

 

11/09/1933


Repousa sobre o trigo

Que ondula um sol parado.

Não me entendo comigo.

Ando sempre enganado.

 

Tivesse eu conseguido

Nunca saber de mim,

Ter-me-ia esquecido

De ser esquecido assim.

 

O trigo mexe leve

Ao sol alheio e igual.

Como a alma aqui é breve

Com o seu bem e mal!

 

 

12/09/1933


Tudo que faço ou medito

Fica sempre na metade.

Querendo, quero o infinito.

Fazendo, nada é verdade.

 

Que nojo de mim me fica

Ao olhar para o que faço!

Minha alma é lúcida e rica,

E eu sou um mar de sargaço –

 

Um mar onde boiam lentos

Fragmentos de um mar de além...

Vontades ou pensamentos?

Não o sei e sei-o bem.

 

 

13/09/1933


Se eu, ainda que ninguém,

Pudesse ter sobre a face

Aquele clarão fugace

Que aquelas árvores têm,

 

Teria aquela alegria

Que as coisas têm de fora,

Porque a alegria é da hora;

Vai com o sol quando esfria.

 

Qualquer coisa me valera

Melhor que a vida que tenho –

Ter esta vida de estranho

Que só do sol me viera!

 

 

16/09/1933


Tenho tanto sentimento

Que é frequente persuadir-me

De que sou sentimental,

Mas reconheço, ao medir-me,

Que tudo isso é pensamento,

Que não senti afinal.

 

Temos, todos que vivemos,

Uma vida que é vivida

E outra vida que é pensada,

E a única vida que temos

É essa que é dividida

Entre a verdadeira e a errada.

 

Qual porém é verdadeira

E qual errada, ninguém

Nos saberá explicar;

E vivemos de maneira

Que a vida que a gente tem

É a que tem que pensar.

 

 

18/09/1933


Durmo. Se sonho, ao despertar não sei

      Que coisas eu sonhei.

Durmo. Se durmo sem sonhar, desperto

      Para um espaço aberto

Que não conheço, pois que despertei

      Para o que inda não sei.

Melhor é nem sonhar nem não sonhar

      E nunca despertar.

 

 

19/09/1933


Viajar! Perder países!

Ser outro constantemente,

Por a alma não ter raízes

De viver de ver somente!

 

Não pertencer nem a mim!

Ir em frente, ir a seguir

A ausência de ter um fim,

E da ânsia de o conseguir!

 

Viajar assim é viagem.

Mas faço-o sem ter de meu

Mais que o sonho da passagem.

O resto é só terra e céu.

 

 

20/09/1933


Que coisa distante

Está perto de mim?

Que brisa fragrante

Me vem neste instante

De ignoto jardim?

 

Se alguém mo dissesse,

Não quisera crer.

Mas sinto-o, e é esse

O ar bom que me tece

Visões sem as ver.

 

Não sei se é dormindo

Ou alheado que estou:

Sei que estou sentindo

A boca sorrindo

Aos sonhos que sou.

 

 

02/10/1933


Na ribeira deste rio

Ou na ribeira daquele

Passam meus dias a fio.

Nada me impede, me impele,

Me dá calor ou dá frio.

 

Vou vendo o que o rio faz

Quando o rio não faz nada.

Vejo os rastros que ele traz,

Numa sequência arrastada,

Do que ficou para trás.

 

Vou vendo e vou meditando,

Não bem no rio que passa

Mas só no que estou pensando,

Porque o bem dele é que faça

Eu não ver que vai passando.

 

Vou na ribeira do rio

Que está aqui ou ali,

E do seu curso me fio,

Porque, se o vi ou não vi.

Ele passa e eu confio.

 

 

02/10/1933


No mal-estar em que vivo,

No mal pensar em que sinto,

Sou de mim mesmo cativo,

A mim mesmo minto.

 

Se fosse outro fora outro.

Se em mim houvesse certeza,

Não seria o fluido e neutro

Que ama a beleza.

 

Sim, que ama a beleza e a nega

Nesta vida sem bordão

Que contra si mesma alega

Que tudo é vão.

 

 

02/10/1933


Quando era criança

Vivi, sem saber,

Só para hoje ter

Aquela lembrança.

 

E hoje que sinto

Aquilo que fui.

Minha vida flui,

Feita do que minto.

 

Mas nesta prisão,

Livro único, leio

O sorriso alheio

De quem fui então.

 

 

02/10/1933


Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva

Não faz ruído senão com sossego.

Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva

Do que não sabe, o sentimento é cego.

Chove. Meu ser (quem sou) renego...

 

Tão calma é a chuva que se solta no ar

(Nem parece de nuvens) que parece

Que não é chuva, mas um sussurrar

Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.

Chove. Nada apetece...

 

Não paira vento, não há céu que eu sinta.

Chove longínqua e indistintamente,

Como uma coisa certa que nos minta,

Como um grande desejo que nos mente.

Chove. Nada em mim sente...

 

 

02/10/1933


Grandes mistérios habitam

O limiar do meu ser,

O limiar onde hesitam

Grandes pássaros que fitam

Meu transpor tardo de os ver.

 

São aves cheias de abismo,

Como nos sonhos as há.

Hesito se sondo e cismo,

E à minha alma é cataclismo

O limiar onde está.

 

Então desperto do sonho

E sou alegre da luz,

Inda que em dia tristonho;

Porque o limiar é medonho

E todo passo é uma cruz.

 

 

02/10/1933


Dorme, que a vida é nada!

Dorme, que tudo é vão!

Se alguém achou a estrada,

Achou-a em confusão,

Com a alma enganada.

 

Não há lugar nem dia

Para quem quer achar,

Nem paz nem alegria

Para quem, por amar,

Em quem ama confia.

 

Melhor entre onde os ramos

Tecem dosséis sem ser

Ficar como ficamos,

Sem pensar nem querer,

Dando o que nunca damos.

 

 

10/10/1933


Não sei que sonho me não descansa

      E me faz mal...

Mas eia! o harmónio a guiar a dança

      Nesse quintal.

 

E eu perco o fio ao que não existe

      E ouço dançar,

Já não alheio, nem sequer triste,

      Só de escutar.

 

Quanta alegria onde os outros são

      E dançam bem!

Dei-lhes de graça meu coração

      E o que ele tem.

 

Na noite calma o harmónio toca

      Aquela dança,

E o que em mim sonha um momento evoca

      Nova esperança

 

Nova esperança que há de cessar

      Quando, já dia,

O harmónio eterno que há de acabar

      Feche a alegria.

 

Ah, ser os outros! Se eu o pudesse

      Sem outros ser!,

Enquanto o harmónio minha alma enchesse

      De o não saber.

 

 

10/10/1933


Onda que, enrolada, tornas,

Pequena, ao mar que te trouxe

E ao recuar te transtornas

Como se o mar nada fosse,

 

Porque é que levas contigo

Só a tua cessação,

E, ao voltar ao mar antigo,

Não levas meu coração?

 

Há tanto tempo que o tenho

Que me pesa de o sentir.

Leva-o no som sem tamanho

Com que te ouço fugir!

 

 

09/05/1934


Montes, e a paz que há neles, pois são longe...

      Paisagens, isto é, ninguém...

Tenho a alma feita para ser de um monge

      Mas não me sinto bem.

 

Se eu fosse outro, fora outro. Assim

      Aceito o que me dão,

Como quem espreita para um jardim

      Onde os outros estão.

 

Que outros? Não sei. Há no sossego incerto

      Uma paz que não há,

E eu fito sem o ler o livro aberto

      Que nunca mo dirá...

 

 

09/05/1934


Neste mundo em que esquecemos

Somos sombras de quem somos,

E os gestos reais que temos

No outro em que, almas, vivemos,

São aqui esgares e assomos.

 

Tudo é noturno e confuso

No que entre nós aqui há.

Projeções, fumo difuso

Do lume que brilha ocluso

Ao olhar que a vida dá.

 

Mas um ou outro, um momento,

Olhando bem, pode ver

Na sombra e seu movimento

Qual no outro mundo é o intento

Do gesto que o faz viver.

 

E então encontra o sentido

Do que aqui está a esgarar,

E volve ao seu corpo ido,

Imaginado e entendido,

A intuição de um olhar.

 

Sombra do corpo saudosa,

Mentira que sente o laço

Que a liga à maravilhosa

Verdade que a lança, ansiosa,

No chão do tempo e do espaço.

 

 

09/05/1934


Foi um momento

O em que pousaste

Sobre o meu braço,

Num movimento

Mais de cansaço

Que pensamento,

A tua mão

E a retiraste.

Senti ou não?

 

Não sei. Mas lembro

E sinto ainda

Qualquer memória

Fixa e corpórea

Onde pousaste

A mão que teve

Qualquer sentido

Incompreendido,

Mas tão de leve!...

 

Tudo isto é nada,

Mas numa estrada

Como é a vida

Há uma coisa

Incompreendida...

 

Sei eu se quando

A tua mão

Senti pousando

Sobre o meu braço,

E um pouco, um pouco,

No coração,

Não houve um ritmo

Novo no espaço?

 

Como se tu,

Sem o querer,

Em mim tocasses

Para dizer

Qualquer mistério,

Súbito e etéreo,

Que nem soubesses

Que tinha ser.

 

Assim a brisa

Nos ramos diz

Sem o saber

Uma imprecisa

Coisa feliz.

 

 

09/05/1934


Cessa o teu canto!

Cessa, que, enquanto

O ouvi, ouvia

Uma outra voz

Como que vindo

Nos interstícios

Do brando encanto

Com que o teu canto

Vinha até nós.

 

Ouvi-te e ouvi-a

No mesmo tempo

E diferentes

Juntas a cantar.

E a melodia

Que não havia,

Se agora a lembro,

Faz-me chorar.

 

Foi tua voz

Encantamento

Que, sem querer,

Nesse  momento,

Vago acordou

Um ser qualquer

Alheio a nós

Que nos falou?

 

Não sei. Não cantes!

Deixa-me ouvir

Qual o silêncio

Que há a seguir

A tu cantares!

 

Ah, nada, nada!

Só os pesares

De ter ouvido,

De ter querido

Ouvir para além

Do que é o sentido

Que uma voz tem.

 

Que anjo, ao ergueres

A tua voz,

Sem o saberes

Veio baixar

Sobre esta terra

Onde a alma erra

E com as asas

Soprou as brasas

De ignoto lar?

 

Não cantes mais!

Quero o silêncio

Para dormir

Qualquer memória

Da voz ouvida,

Desentendida,

Que foi perdida

Por eu a ouvir...

 

 

09/05/1934


Houve um ritmo no meu sono.

Quando acordei o perdi.

Porque saí do abandono

De mim mesmo, em que vivi?

 

Não sei que era o que não era.

Sei que suave me embalou,

Como se o embalar quisera

Tornar-me outra vez quem sou.

 

Houve uma música finda

Quando acordei de a sonhar.

Mas não morreu: dura ainda

No que me faz não pensar.

 

 

11/06/1934


Tenho dó das estrelas

Luzindo há tanto tempo,

Há tanto tempo...

Tenho dó delas.

 

Não haverá um cansaço

Das coisas,

De todas as coisas,

Como das pernas ou de um braço?

 

Um cansaço de existir,

De ser,

Só de ser,

O ser triste brilhar ou sorrir...

 

Não haverá, enfim,

Para as coisas que são,

Não a morte, mas sim

Uma outra espécie de fim,

Ou uma grande razão –

Qualquer coisa assim

Como um perdão?

 

 

(Mensagem, n.º1, abril de 1938)


Ó naus felizes, que do mar vago

Volveis enfim ao silêncio do porto

Depois de tanto noturno mal –

Meu coração é um morto lago,

E à margem triste do lago morto

Sonha um castelo medieval...

 

E nesse, onde sonha, castelo triste,

Nem sabe saber a, de mãos formosas

Sem gosto ou cor, triste castelã

Que um porto além rumoroso existe,

Donde as naus negras e silenciosas

Se partem quando é no mar manhã...

 

Nem sequer sabe que há o, onde sonha,

Castelo triste... Seu spírito monge

Para nada externo é perto e real...

E enquanto ela assim se esquece, tristonha,

Regressam, velas no mar ao longe,

As naus ao porto medieval...

 


No ouro sem fim da tarde morta,

Na poeira de ouro sem lugar

Da tarde que me passa à porta

Para não parar,

 

No silêncio dourado ainda

Dos arvoredos verde fim,

Recordo. Eras antiga e linda

E estás em mim...

 

Tua memória há sem que houvesses,

Teu gesto, sem que fosses alguém,

Como uma brisa me estremeces

E eu choro um bem...

 

Perdi-te. Não te tive. A hora

É suave para a minha dor.

Deixa meu ser que rememora

Sentir o amor,

 

Ainda que amar seja um receio,

Uma lembrança falsa e vã,

E a noite deste vago anseio

Não tenha manhã.

 


Na quinta entre ciprestes

Secaram todas as fontes,

As rosas brancas agrestes

Trazidas do fim dos montes

Vós mas tirastes, que as destes...

 

No rio ao pé de salgueiros

Passaram as águas em vão,

Com tristezas de estrangeiros

Passaram pelos salgueiros

As ondas, sem ter razão.

 

 


Dizem?

Esquecem.

Não dizem?

Disseram.

 

Fazem?

Fatal.

Não fazem?

Igual.

 

Porquê

Esperar?

– Tudo é

Sonhar.

 


ABDICAÇÃO

 

Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços

E chama-me teu filho.

                  Eu sou um rei

Que voluntariamente abandonei

O meu trono de sonhos e cansaços.

 

Minha espada, pesada a braços lassos,

Em mãos viris e calmas entreguei;

E meu cetro e coroa, – eu os deixei

Na antecâmara, feitos em pedaços.

 

Minha cota de malha, tão inútil,

Minhas esporas, de um tinir tão fútil,

Deixei-as pela fria escadaria.

 

Despi a realeza, corpo e alma,

E regressei à noite antiga e calma

Como a paisagem ao morrer do dia.

 

 

(Ressurreição, n.º9, fevereiro de 1920)


IRONIA

 

Faz um a casa onde outro pôs a pedra.

O galego Colón, de Pontevedra,

Seguiu-nos para onde nós não fomos.

Não vimos da nossa árvore esses pomos.

Um império ganhou para Castela,

Para si glória merecida – aquela

De um grande longe aos mares conquistado.

Mas não ganhou o tê-lo começado.

 

 

(integrado no conjunto de poemas Mar Português e publicado na revista Contemporânea, n.º4, vol. II, 1922).

 


NATAL

 

Nasce um Deus. Outros morrem. A verdade

Nem veio nem se foi: o Erro mudou.

Temos agora uma outra Eternidade,

E era sempre melhor o que passou.

 

Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.

Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.

Um novo Deus é só uma palavra.

Não procures nem creias: tudo é oculto.

 

 

(Contemporânea, n.º6, dezembro de 1922)


O MENINO DA SUA MÃE

 

No plaino abandonado

Que a morna brisa aquece,

De balas trespassado

– Duas, de lado a lado –,

Jaz morto, e arrefece.

 

Raia-lhe a farda o sangue.

De braços estendidos,

Alvo, louro, exangue,

Fita com olhar langue

E cego os céus perdidos.

 

Tão jovem! que jovem era!

(Agora que idade tem?)

Filho único, a mãe lhe dera

Um nome e o mantivera:

«O menino da sua mãe».

 

Caiu-lhe da algibeira

A cigarreira breve.

Dera-lhe a mãe. Está inteira

E boa a cigarreira,

Ele é que já não serve.

 

De outra algibeira, alada

Ponta a roçar o solo,

A brancura embainhada

De um lenço... Deu-lho a criada

Velha que o trouxe ao colo.

 

Lá longe, em casa, há a prece:

«Que volte cedo, e bem!»

(Malhas que o Império tece!)

Jaz morto, e apodrece,

O menino da sua mãe.

 

 

(Contemporânea, 3ª série, n.º1, 1926)


MARINHA

 

Ditosos a quem acena

Um lenço de despedida!

São felizes: têm pena...

Eu sofro sem pena a vida.

 

Doo-me até onde penso,

E a dor é já de pensar,

Órfão de um sonho suspenso

Pela maré a vazar...

 

E sobe até mim, já farto

De improfícuas agonias,

No cais de onde nunca parto,

A maresia dos dias.

 

 

(Presença, n.º5, junho de 1927)


QUALQUER MÚSICA

 

Qualquer música, ah, qualquer,

Logo que me tire da alma

Esta incerteza que quer

Qualquer impossível calma!

 

Qualquer música – guitarra,

Viola, harmónio, realejo...

Um canto que se desgarra

Um sonho em que nada vejo...

 

Qualquer coisa que não vida!

Jota, fado, a confusão

Da última dança vivida...

Que eu não sinta o coração!

 

 

(Presença, n.º10, março de 1928)


DEPOIS DA FEIRA

 

Vão vagos pela estrada,

Cantando sem razão

A última esp’rança dada

À última ilusão.

Não significam nada.

Mimos e bobos são.

 

Vão juntos e diversos

Sob um luar de ver,

Em que sonhos imersos

Nem saberão dizer,

E cantam aqueles versos

Que lembram sem querer.

 

Pajens de um morto mito,

Tão líricos!, tão sós!,

Não têm na voz um grito,

Mal têm a própria voz;

E ignora-os o infinito

Que nos ignora a nós.

 

 

(Presença, n.º16, novembro de 1928)


ABAT-JOUR

 

A lâmpada acesa

(Outrem a acendeu)

Baixa uma beleza

Sobre o chão que é meu.

 

No quarto deserto

Salvo o meu sonhar,

Faz no chão incerto

Um círculo a ondear.

 

E entre a sombra e a luz

Que oscila no chão

Meu sonho conduz

Minha inatenção.

 

Bem sei... Era dia

E longe de aqui...

Quando me sorria

O que nunca vi!

 

E no quarto silente

Com a luz a ondear

Deixei vagamente

Até de sonhar...

 

 

28/02/1929


GOMES LEAL

 

Sagra, sinistro, a alguns o astro baço.

Seus três anéis irreversíveis são

A desgraça, a tristeza, a solidão.

Oito luas fatais fitam no espaço.

 

Este, poeta, Apolo em seu regaço

A Saturno entregou. A plúmbea mão

Lhe ergueu ao alto o aflito coração,

E, erguido, o apertou, sangrando lasso.

 

Inúteis oito luas da loucura

Quando a cintura tríplice denota

Solidão e desgraça e amargura!

 

Mas da noite sem fim um rastro brota,

Vestígios de maligna formosura:

É a lua além de Deus, álgida e ignota.

 

 

(Cancioneiro, maio de 1930)


O ÚLTIMO SORTILÉGIO

 

«Já repeti o antigo encantamento

E a grande Deusa aos olhos se negou.

Já repeti, nas pausas do amplo vento,

As orações cuja alma é um ser fecundo.

Nada me o abismo deu ou o céu mostrou.

Só o vento volta onde estou toda e só,

E tudo dorme no confuso mundo.

 

«Outrora meu condão fadava as sarças

E a minha evocação do solo erguia

Presenças concentradas das que esparsas

Dormem nas formas naturais das coisas.

Outrora a minha voz acontecia.

Fadas e elfos, se eu chamasse, via,

E as folhas da floresta eram lustrosas.

 

«Minha varinha, com que da vontade

Falava às existências essenciais,

Já não conhece a minha realidade.

Já, se o círculo traço, não há nada.

Murmura o vento alheio extintos ais,

E ao luar que sobe além dos matagais

Não sou mais do que os bosques ou a estrada.

 

«Já me falece o dom com que me amavam.

Já me não torno a forma e o fim da vida

A quantos que, buscando-os, me buscavam.

Já, praia, o mar dos braços não me inunda.

Nem já me vejo ao sol saudado erguida,

Ou, em êxtase mágico perdida,

Ao luar, à boca da caverna funda.

 

«Já as sacras potências infernais,

Que, dormentes sem deuses nem destino,

À substância das coisas são iguais,

Não ouvem minha voz ou os nomes seus.

A música partiu-se do meu hino.

Já meu furor astral não é divino

Nem meu corpo pensado é já um Deus.

 

«E as longínquas deidades do atro poço,

Que tantas vezes, pálida, evoquei

Com a raiva de amar em alvoroço,

Inevocadas hoje ante mim estão.

Como, sem que as amasse, eu as chamei,

Agora, que não amo, as tenho, e sei

Que meu vendido ser consumirão.

 

«Tu, porém, Sol, cujo ouro me foi presa,

Tu, Lua, cuja prata converti,

Se já não podeis dar-me essa beleza

Que tantas vezes tive por querer,

Ao menos meu ser findo dividi –

Meu ser essencial se perca em si,

Só meu corpo sem mim fique alma e ser!

 

«Converta-me a minha última magia

Numa estátua de mim em corpo vivo!

Morra quem sou, mas quem me fiz e havia,

Anónima presença que se beija,

Carne do meu abstrato amor cativo,

Seja a morte de mim em que revivo;

E tal qual fui, não sendo nada, eu seja!»

 

 

(Presença, n.º29, dezembro de 1930)


O ANDAIME

 

O tempo que eu hei sonhado

Quantos anos foi de vida!

Ah, quanto do meu passado

Foi só a vida mentida

De um futuro imaginado!

 

Aqui à beira do rio

Sossego sem ter razão.

Este seu correr vazio

Figura, anónimo e frio,

A vida vivida em vão.

 

A sp’rança que pouco alcança!

Que desejo vale o ensejo?

E uma bola de criança

Sobe mais que a minha sp’rança

Rola mais que o meu desejo.

 

Ondas do rio, tão leves

Que não sois ondas sequer,

Horas, dias, anos, breves

Passam – verduras ou neves

Que o mesmo sol faz morrer.

 

Gastei tudo que não tinha

Sou mais velho do que sou.

A ilusão, que me mantinha,

Só no palco era rainha:

Despiu-se, e o reino acabou.

 

Leve som das águas lentas,

Gulosas da margem ida,

Que lembranças sonolentas

De esperanças nevoentas!

Que sonhos o sonho e a vida!

 

Que fiz de mim? Encontrei-me

Quando estava já perdido.

Impaciente deixei-me

Como a um louco que teime

No que lhe foi desmentido.

 

Som morto das águas mansas

Que correm por ter que ser,

Leva não só as lembranças,

Mas as mortas esperanças –

Mortas, porque hão de morrer.

 

Sou já o morto futuro.

Só um sonho me liga a mim –

O sonho atrasado e obscuro

Do que eu devera ser – muro

Do meu deserto jardim.

 

Ondas passadas, levai-me

Para o olvido do mar!

Ao que não serei legai-me,

Que cerquei  com  um  andaime

A casa por fabricar.

 

 

(Presença, n.º31-32, junho de 1931)


INICIAÇÃO

 

Não dormes sob os ciprestes

Pois não há sono no mundo.

..........................

O corpo é a sombra das vestes

Que encobrem teu ser profundo.

 

Vem a noite, que é a morte,

E a sombra acabou sem ser,

Vais na noite só recorte,

Igual a ti sem querer.

 

Mas na Estalagem do Assombro

Tiram-te os Anjos a capa.

Segues sem capa no ombro,

Com o pouco que te tapa.

 

Então Arcanjos da Estrada

Despem-te e deixam-te nu.

Não tens vestes, não tens nada:

Tens só teu corpo, que és tu.

 

Por fim, na funda caverna,

Os Deuses despem-te mais.

Teu corpo cessa, alma externa,

Mas vês que são teus iguais.

 

.........................

 

A sombra das tuas vestes

Ficou entre nós na Sorte.

Não stás morto, entre ciprestes.

.........................

Neófito, não há morte.

 

 

(Presença, n.º35, maio de 1932)


AUTOPSICOGRAFIA

 

O poeta é um fingidor.

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

 

E os que leem o que escreve,

Na dor lida sentem bem,

Não as duas que ele teve,

Mas só a que eles não têm.

 

E assim nas calhas de roda

Gira a entreter a razão,

Esse comboio de corda

Que se chama coração.

 

 

(Presença, n.º36, novembro de 1932)


ISTO

 

Dizem que finjo ou minto

Tudo que escrevo. Não.

Eu simplesmente sinto

Com a imaginação.

Não uso o coração.

 

Tudo o que sonho ou passo,

O que me falha ou finda,

É como que um terraço

Sobre outra coisa ainda.

Essa coisa é que é linda.

 

Por isso escrevo em meio

Do que não está ao pé,

Livre do meu enleio,

Sério do que não é.

Sentir? Sinta quem lê!

 

 

08/02/1929 (Presença, n.º38, abril de 1933)

 


EROS E PSIQUE

 

... E assim vedes, meu Irmão, que as verdades que vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade.

 

Do ritual do Grau de Mestre do Átrio na Ordem Templária de Portugal

 

 

Conta a lenda que dormia

Uma Princesa encantada

A quem só despertaria

Um Infante, que viria

De além do muro da estrada.

 

Ele tinha que, tentado,

Vencer o mal e o bem,

Antes que, já libertado,

Deixasse o caminho errado

Por o que à Princesa vem.

 

A Princesa Adormecida,

Se espera, dormindo espera.

Sonha em morte a sua vida,

E orna-lhe a fronte esquecida,

Verde, uma grinalda de hera.

 

Longe o Infante, esforçado,

Sem saber que intuito tem,

Rompe o caminho fadado.

Ele dela é ignorado.

Ela para ele é ninguém.

 

Mas cada um cumpre o Destino –

Ela dormindo encantada,

Ele buscando-a sem tino

Pelo processo divino

Que faz existir a estrada.

 

E, se bem que seja obscuro

Tudo pela estrada fora,

E falso, ele vem seguro,

E, vencendo estrada e muro,

Chega onde em sono ela mora.

 

E, inda tonto do que houvera,

À cabeça, em maresia,

Ergue a mão, e encontra hera,

E vê que ele mesmo era

A Princesa que dormia.

 

 

(Presença, n.º41-42, maio de 1934)


INTERVALO

 

Quem te disse ao ouvido esse segredo

Que raras deusas têm escutado –

Aquele amor cheio de crença e medo

Que é verdadeiro só se é segredado?...

Quem to disse tão cedo?

 

Não fui eu, que te não ousei dizê-lo.

Não foi um outro, porque o não sabia.

Mas quem roçou da testa teu cabelo

E te disse ao ouvido o que sentia?

Seria alguém, seria?

 

Ou foi só que o sonhaste e eu te o sonhei?

Foi só qualquer ciúme meu de ti

Que o supôs dito, porque o não direi,

Que o supôs feito, porque o só fingi

Em sonhos que nem sei?

 

Seja o que for, quem foi que levemente,

A teu ouvido vagamente atento,

Te falou desse amor em mim presente

Mas que não passa do meu pensamento

Que anseia e que não sente?

 

Foi um desejo que, sem corpo ou boca,

A teus ouvidos de eu sonhar-te disse

A frase eterna, imerecida e louca –

A que as deusas esperam da ledice

Com que o Olimpo se apouca.

 

 

(Momento, n.º8, abril de 1935)

 


CONSELHO

 

Cerca de grandes muros quem te sonhas.

Depois, onde é visível o jardim

Através do portão de grade dada,

Põe quantas flores são as mais risonhas,

Para que te conheçam só assim.

Onde ninguém o vir não ponhas nada.

 

Faz canteiros como os que outros têm,

Onde os olhares possam entrever

O teu jardim como lho vais mostrar.

Mas onde és teu, e nunca o vê ninguém

Deixa as flores que vêm do chão crescer

E deixa as ervas naturais medrar.

 

Faz de ti um duplo ser guardado;

E que ninguém, que veja e fite, possa

Saber mais que um jardim de quem tu és –

Um jardim ostensivo e reservado,

Por trás do qual a flor nativa roça

A erva tão pobre que nem tu a vês...

 

 

(Sudoeste, n.º3, novembro de 1935)


LIBERDADE

 

(Falta uma citação de Séneca)

 

 

Ai que prazer

Não cumprir um dever,

Ter um livro para ler

E não o fazer!

Ler é maçada,

Estudar é nada.

O sol doira

Sem literatura.

O rio corre, bem ou mal,

Sem edição original.

E a brisa, essa,

De tão naturalmente matinal,

Como tem tempo não tem pressa...

 

Livros são papéis pintados com tinta.

Estudar é uma coisa em que está indistinta

A distinção entre nada e coisa nenhuma.

 

Quanto é melhor, quando há bruma,

Esperar por D. Sebastião,

Quer venha ou não!

 

Grande é a poesia, a bondade e as danças...

Mas o melhor do mundo são as crianças,

Flores, música, o luar, e o sol, que peca

Só quando, em vez de criar, seca.

 

O mais do que isto

É Jesus Cristo,

Que não sabia nada de finanças

Nem consta que tivesse biblioteca...

 

 

(Seara Nova, n.º526, 11 de setembro de 1937)


POEMA

 

O céu, azul de luz quieta.

As ondas brandas a quebrar,

Na praia lúcida e completa –

Pontos de dedos a brincar.

 

No piano anónimo da praia

Tocam nenhuma melodia

De cujo ritmo por fim saia

Todo o sentido deste dia.

 

Que bom, se isto satisfizesse!

Que certo, se eu pudesse crer

Que esse mar e essas ondas e esse

Céu têm vida e têm ser.

 

 

(Presença, n.º53-54, novembro de 1938)


TOMÁMOS A VILA DEPOIS DUM INTENSO BOMBARDEAMENTO

 

A criança loura

Jaz no meio da rua.

Tem as tripas de fora

E por uma corda sua

Um comboio que ignora.

 

A cara está um feixe

De sangue e de nada.

Luz um pequeno peixe

– Dos que boiam nas banheiras –

À beira da estrada.

 

Cai sobre a estrada o escuro.

Longe, ainda uma luz doura

A criação do futuro...

 

E o da criança loura?

 


NO TÚMULO DE CHRISTIAN ROSENCREUTZ

 

Não tínhamos ainda visto o cadáver de nosso Pai prudente e sábio. Por isso afastámos para um lado o altar. Então pudemos levantar uma chapa forte de metal amarelo, e ali estava um belo corpo célebre, inteiro e incorrupto..., e tinha na mão um pequeno livro em pergaminho, escrito a oiro, intitulado T., que é, depois da Bíblia, o nosso mais alto tesouro nem deve ser facilmente submetido à censura do mundo.

 

FAMA FRATERNITATIS ROSEAE CRUCIS.

 

I

 

Quando, despertos deste sono, a vida,

Soubermos o que somos, e o que foi

Essa queda até Corpo, essa descida

Até à Noite que nos a Alma obstrui,

 

Conheceremos pois toda a escondida

Verdade do que é tudo que há ou flui?

Não: nem na Alma livre é conhecida...

Nem Deus, que nos criou, em Si a inclui.

 

Deus é o Homem de outro Deus maior:

Adão Supremo, também teve Queda;

Também, como foi nosso Criador,

 

Foi criado, e a Verdade lhe morreu...

De além o Abismo, Spírito Seu, Lha veda,

Aquém não a há no Mundo, Corpo Seu.

 

 

II

 

Mas antes era Verbo, aqui perdido

Quando a Infinita Luz, já apagada,

Do Caos, chão do Ser, foi levantada

Em Sombra, e o Verbo ausente escurecido.

 

Mas se a Alma sente a sua forma errada,

Em si, que é Sombra, vê enfim luzido

O Verbo deste Mundo, humano e ungido,

Rosa Perfeita, em Deus crucificada.

 

Então, senhores do limiar dos Céus,

Podemos ir buscar além de Deus

O Segredo do Mestre e o Bem profundo;

 

Não só de aqui, mas já de nós, despertos,

No sangue atual de Cristo enfim libertos

Do a Deus que morre a geração do Mundo.

 

 

III

 

Ah, mas aqui, onde irreais erramos,

Dormimos o que somos, e a verdade,

Inda que enfim em sonhos a vejamos,

Vemo-la, porque em sonho, em falsidade.

 

Sombras buscando corpos, se os achamos

Como sentir a sua realidade?

Com mãos de sombra, Sombras, que tocamos?

Nosso toque é ausência e vacuidade.

 

Quem desta Alma fechada nos liberta?

Sem ver, ouvimos para além da sala

De ser: mas como, aqui, a porta aberta?

 

...................................

 

Calmo na falsa morte a nós exposto,

O Livro ocluso contra o peito posto,

Nosso Pai Roseacruz conhece e cala.

 

 

 

 

RUBAIYAT

 

O fim do longo, inútil dia ensombra.

A mesma esperança que não deu se escombra.

Prolixa... A vida é um mendigo bêbado

Que estende a mão à sua própria sombra.

 

Dormimos o universo.