Poesia completa de Alberto Caeiro

SUMÁRIO

Nota prévia

 

Prefácio de Ricardo Reis

 

O Guardador de Rebanhos

O Pastor Amoroso

Poemas Inconjuntos

 

Fragmentos

Poemas variantes

Poemas de atribuição incerta

 

Prosas

Entrevista com Alberto Caeiro

[Só a prosa é que se emenda]

 

Listas de poemas elaboradas por Pessoa

Notas

 

Caeiro triunfal — Richard Zenith

A noção das coisas — Fernando Cabral Martins

 

Referências

Sobre o autor

SINAIS USADOS NA FIXAÇÃO DO TEXTO:

 

— espaço deixado em branco pelo autor

[.] — palavra ou frase ilegível

[ ] — palavra acrescentada pelos editores

[?] — leitura conjectural

NOTA PRÉVIA

De modo geral, há bastantes formas aceitáveis de publicar um determinado livro de Fernando Pessoa. Obras como o Livro do Desassossego, Fausto e outros textos dramáticos, quase todos os seus contos e quase todos os seus ensaios foram deixados como amontoados de fragmentos, com poucas e contraditórias indicações de como deveriam ser articulados. E mesmo quando há indicações mais claras, teremos nós o direito de ligar peças que o autor deixou dispersas? Não é fácil responder a essa pergunta, que faz recordar as grandes discussões a propósito do restauro de igrejas e monumentos em ruínas. Com a importante diferença de os edifícios, no caso de Pessoa, nunca terem chegado a ser levantados. Publicar Pessoa não é reconstruir, mas sim construir. Quem organiza um livro deste autor vê-se quase sempre obrigado a dar uma ordem aos textos, pelo menos até certo ponto, a decidir que material deve ser incluído e a submetê-lo a um tratamento qualquer (já que os originais são freqüentemente salpicados por variantes e sinais de dubitação). A obra atribuída a Alberto Caeiro, embora tenha fronteiras mais ou menos claras, não foge da regra geral.

O Guardador de Rebanhos, apesar da sua relativa coerência global, está longe de ser uma obra acabada e estável e O Pastor Amoroso ainda menos, enquanto os Poemas Inconjuntos, segundo o próprio título indica, nem à coerência aspiram. Não sabemos que forma final Pessoa teria dado a qualquer das três obras, nem que forma teria assumido o livro (ou livros) que as contivesse. O autor encarou quer a possibilidade de publicar O Guardador de Rebanhos separadamente, precedido por um pequeno prefácio (ver as cartas de Pessoa a João Gaspar Simões datadas de 25-2-1933 e 11-4-1933), quer de publicar toda a poesia caeiriana num só livro, juntamente com “uns 3 ou 5 livros das Odes do Ricardo Reis” e ainda as Notas para a Recordação do Meu Mestre Caeiro de Álvaro de Campos (ver carta a jgs datada de 28-7-1932). Um outro plano excluía as Odes mas incluía, para além das Notas de Campos, uma “Nota dos Editores”, um prefácio de Ricardo Reis e um horóscopo feito por Pessoa (projeto com a cota 48C/28).

A presente edição abrange todos os poemas de Caeiro que localizamos no espólio pessoano (incluindo seis inéditos entre os Poemas Inconjuntos), seguidos de fragmentos (um dos quais inédito), poemas variantes, dois poemas de atribuição incerta (inéditos) e listas de poemas caeirianos elaboradas por Pessoa. Uma vez que a “prosa” de Caeiro é escassa, consideramos conveniente publicá-la neste volume. Apesar de Alberto Caeiro não ser um escritor de prosa, algumas das palavras que teria proferido foram registradas, sobretudo por Álvaro de Campos, nas conhecidas Notas para a Recordação do Meu Mestre Caeiro. Menos conhecida é uma “entrevista” com Caeiro, situada em Vigo e datável de 1914, bem como um apontamento assinado por Caeiro, embora se trate de uma transcrição de palavras suas feita por outra pessoa. Escrito no verso de uma página da referida “entrevista”, esse apontamento também datará de 1914.

 

 

Segundo conta Ricardo Reis, os parentes do falecido Alberto Caeiro pediram-lhe um prefácio para a edição dos seus Poemas Completos. Pessoa, como de costume, foi escrevendo muitos trechos destinados a esse prefácio, com a idéia de os incluir posteriormente num único texto fluido, mas essa idéia, como de costume, nunca foi concretizada, embora exista um plano pormenorizado para a organização de todo o material escrito. Reis acaba por reconhecer, entretanto, que o seu texto “excedeu o volume natural de um prefácio” e sugere que seja publicado “como prefácio ou como comentário separado ao livro do Mestre” (num trecho com a cota 52A/37-8). Escreve, assim, um outro prefácio mais curto, em que renuncia à sua intenção original de fazer, “em prefácio, um largo estudo crítico e excursivo sobre a obra de Caeiro” por impossibilidade de produzir um estudo que o satisfizesse. “Não se pode comentar”, explica, “porque se não pode pensar o que é directo, como o céu e a terra.” É esse breve prefácio que publicamos aqui, deixando o grande e inacabado estudo ricardiano sobre o Mestre para um outro livro. Também para um outro livro ficam as Notas para a Recordação do Meu Mestre Caeiro. Damos conta, em posfácio, de vários pontos abordados por Reis no seu prefácio e por Campos nas suas Notas, bem como por Thomas Crosse no seu “Translator’s Preface”, por António Mora em O Regresso dos Deuses e por Fernando Pessoa num artigo inacabado destinado à revista A Águia, onde pretendia noticiar o aparecimento do “Descobridor da Natureza”, do “Colombo das sensações verdadeiras”. Optamos por não incluir todo esse material ensaístico sobre Caeiro, atendendo ao ditame “Toda obra fala por si, [...] quem não entende não pode entender, e não há pois que explicar-lhe”, que Reis escreve no pequeno prefácio seu que aqui publicamos.

A propósito de ensaios sobre Caeiro, escritos já não por Pessoa mas por pessoanos, os interessados podem consultar a exaustiva bibliografia comentada de Alberto Caeiro elaborada por José Blanco e publicada em Portuguese Literary & Cultural Studies 3, “Pessoa’s Alberto Caeiro”, 1999.

 

 

Para a fixação do texto, o nosso critério consistiu na escolha da primeira lição escrita e não riscada. Isso não envolve uma afirmação acerca da prevalência, em teoria, da primeira lição ou da última. Mas a verdade é que a não-observação desse critério, no caso de Pessoa em geral e no de Caeiro em particular, pode conduzir à deformação do texto.

Se compararmos as variantes, introduzidas por Pessoa nos seus originais de O Guardador de Rebanhos, com aquelas que ele efetivamente adotou ao publicar quase metade desses poemas em revistas, verificamos que ele aproveitou na maioria das vezes a última variante. No entanto, se nós optássemos sempre pela última variante no caso dos poemas não publicados por Pessoa, aconteceria, por exemplo, que a célebre hesitação no poema xv de O Guardador de Rebanhos, onde se lê “duas” por cima de “quatro” no primeiro verso (“As quatro canções que seguem”), teria que prevalecer, dando então “As duas canções que seguem”. Isso apesar de a simples leitura das canções “doentes” que se seguem mostrar tratar-se de quatro, e não de duas.

Outro exemplo: no poema ii, o adjetivo “eterna” no verso “Para a eterna novidade do mundo” sugeriu a Pessoa nada menos que cinco adjetivos variantes: “perpétua”, “súbita”, “serena”, “grande”, “completa”. Nenhum deles aparece escolhido, ou sequer preferido. Cada um vem alterar o sentido, encaminhá-lo numa direção diferente. E, para além do fato singelo de não se saber, com certeza absoluta, qual deles apareceu ali em último lugar, qualquer escolha desregularia o poema inteiro. Outro exemplo ainda: no último verso do poema xxiii, o verbo “parecer”, sem ser riscado, tem escritas por baixo, sucessivamente, duas formas alternativas, “saber” e “perceber”. Nenhuma delas é preferida, nenhuma delas é cortada.