Permita-me, perfeição divina em forma de mulher, que eu me defenda, provando em detalhes que não sou culpado destes supostos crimes.
Anne – Permite-me, infecção contagiosa em forma de homem, que eu acuse tua pessoa amaldiçoada, provando em detalhes que és culpado destes sabidos crimes.
Ricardo – Mulher mais linda do que as palavras podem descrevê-la, me dê uma folga e escute com paciência o meu pedido de desculpas.
Anne – Homem mais podre do que os corações podem imaginar-te, tu não tens como desculpar-te verdadeiramente, a não ser que te enforques.
Ricardo – De tanta desesperança devo realmente me acusar a mim mesmo.
Anne – E, com a desesperança, estarás te escusando de justiçar os teus atos como eles merecem, tu que assassinaste homens que não mereciam morrer.
Ricardo – Digamos que eu não os matei.
Anne – Então digamos que eles não foram assassinados. Mas estão mortos, e por ti, escravo diabólico.
Ricardo – Não matei o seu marido.
Anne – Ora, mas então ele está vivo.
Ricardo – Não, ele está morto: assassinado pela mão de Eduardo.
Anne – Mentes do fundo de tua garganta fétida. A Rainha Margaret viu o teu punhal assassino fumegando no sangue dele, o mesmo que uma vez empunhaste contra o peito dela e que teus irmãos providencialmente conseguiram desviar do alvo.
Ricardo – Fui provocado pela língua difamatória daquela mulher, que jogou a culpa dos dois nos meus ombros inocentes.
Anne – Foste provocado por tua mente sanguinária, que jamais sonha com outra coisa que não carnificinas. Por acaso não mataste o Rei?
Ricardo – Eu lhe garanto que sim.
Anne – Ele me garante, o porco-bravo![15] Então, que Deus me garanta também que tu possas ser amaldiçoado por teu ato infame. Ah, ele era gentil, meigo, conciliatório, virtuoso.
Ricardo – Tanto melhor para o Senhor do Céu, que agora o tem consigo.
Anne – Ele está no Céu, onde jamais te será concedida entrada.
Ricardo – Que ele me agradeça por tê-lo ajudado a chegar lá, pois ele combinava mais com o céu do que com a terra.
Anne – E tu não combinas com lugar algum que não seja o inferno.
Ricardo – Tem mais um lugar, sim, se você quiser me ouvir nomeá-lo.
Anne – Em masmorra ou calabouço?
Ricardo – Em tua cama.
Anne – Que a insônia acometa a cama onde te deitares.
Ricardo – E acometerá, milady, até que contigo eu me deite.
Anne – Que assim seja!
Ricardo – Eu sei que assim será. Mas, minha doce Lady Anne, deixemos de lado este encontro afiado de nossos ágeis raciocínios, e vamos nos deter em um método mais lento: quanto às mortes prematuras desses dois Plantagenetas, Henrique VI e seu filho Eduardo, não é o causador tão culpado quanto o executor?
Anne – Tu foste a causa e o mais execrado efeito.
Ricardo – Tua beleza foi a causa desse efeito: a beleza que não me dava paz nos meus sonhos, pedindo que eu levasse a cabo a morte de todo mundo, para que eu pudesse viver uma hora que fosse na doçura de teu peito.
Anne – Se eu acreditasse nisso, eu te digo, homicida, estas minhas unhas encarregavam-se de lacerar essa beleza de minhas faces.
Ricardo – Estes meus olhos não suportariam a destruição dessa beleza. Você não conseguiria danificá-la comigo por perto. Assim como o mundo revigora-se com o sol, revigoro-me eu com a sua beleza; ela é os meu dias, a minha vida.
Anne – Que o negror da noite escureça os teus dias, e que a morte acabe com tua vida.
Ricardo – Não rogue pragas a você mesma, minha linda criatura; você é um e outro.
Anne – Gostaria que fosse, para me vingar de ti.
Ricardo – Esta é uma briga muito natural, vingar-se daquele que te ama.
Anne – É uma briga justa e racional, vingar-me daquele que matou o meu marido.
Ricardo – Aquele que a destitui, milady, de seu marido, o fez para ajudá-la a conseguir melhor marido.
Anne – Melhor que ele ainda está para nascer.
Ricardo – Já nasceu aquele que te ama mais do que lhe permite a sua capacidade de amar.
Anne – E qual o nome dele?
Ricardo – Plantageneta.[16]
Anne – Mas esse era ele.
Ricardo – O mesmo nome, mas um homem de outra e melhor natureza.
Anne – E onde está esse homem?
Ricardo – Aqui. [Ela lhe cospe na cara.]
Por que cospes em mim?
Anne – Se minha saliva fosse veneno mortal, pelo teu bem.
Ricardo – Jamais saiu veneno de tão doce lugar.
Anne – Jamais escorreu veneno em tão nojento sapo. Fora da minha vista! Tu infectas os meus olhos.
Ricardo – Os teus olhos, minha doce dama, já infectaram os meus.
Anne – Queria que os meus olhos fossem basiliscos, que matam só de olhar.
Ricardo – Queria que fossem, para que eu pudesse morrer de uma vez, pois agora eles estão me matando de uma morte em vida. Esses teus olhos já arrancaram lágrimas salgadas dos meus, envergonharam seu aspecto com um reservatório de lágrimas infantis. Estes meus olhos, que jamais derramaram uma lágrima sequer de remorso, nem quando meu pai, um York, e meu irmão mais velho, Eduardo, choraram ao ouvir o gemido lamentável que o menino Rutland[17] deixou escapar quando Clifford, de pele escura, puxou da espada contra ele; tampouco quando o teu guerreiro pai, como uma criança, contou a triste história da morte de meu pai e por vinte vezes interrompeu-se para soluçar e chorar, de tal modo que todos os que escutavam tinham as faces molhadas como árvores aguadas pela chuva. Naquele momento triste, os meus olhos viris desdenharam uma humilde lágrima. E as lágrimas que esses pesares não conseguiram arrancar de meus olhos, a tua beleza conseguiu, e me cegou de tanto chorar. Nunca supliquei por coisa nenhuma, nem a amigo nem a inimigo; de minha boca nunca se ouviram palavras doces, suaves. Mas, agora, a tua beleza me impõe um preço a pagar, e meu coração orgulhoso suplica e impele meus lábios a falar. [Ela o encara com desdém.]
Não ensines tal desdém aos teus lábios, pois eles foram feitos para beijar, milady, e não para tal desprezo. Se o teu coração vingativo não consegue perdoar, olha aqui: eu te empresto esta espada afiada e te peço o favor de enterrá-la neste meu peito fiel, deixando partir a alma que te adora e venera. Deixo nu o meu peito para o golpe fatal, e humildemente imploro, de joelhos, pela minha morte. [Ajoelha-se; exibe o peito nu, e ela faz menção de feri-lo com a espada.]
Não, não pares, pois eu matei o Rei Henrique… mas foi a tua beleza que me levou a tanto. Sim, agora termina comigo. Fui eu quem apunhalou o jovem Eduardo… mas foi o teu rosto angelical que me levou a tal decisão. [Ela deixa cair a espada.]
Levante a espada de novo, ou então me levante a mim.
Anne – Põe-te de pé, hipócrita. [Ele se põe de pé.]
Embora eu deseje a tua morte, não serei dela o executor.
Ricardo – Então me peça para eu me matar, e eu o farei.
Anne – Já pedi.
Ricardo – Você fez isso quando estava furiosa, tomada pela raiva. Fale de novo, e, enquanto estiver falando, esta minha mão, que pelo teu amor matou o teu amor, irá pelo teu amor matar um amor ainda mais verdadeiro: dessas duas mortes você é cúmplice.
Anne – Eu queria poder ver dentro do teu coração.
Ricardo – Ele se revela nas minhas palavras.
Anne – Temo que coração e palavras sejam falsos.
Ricardo – Então nunca nenhum homem foi verdadeiro.
Anne – Vamos, vamos, guarde a sua espada.
Ricardo – Então me diga que estou consigo reconciliado.
Anne – Isto tu só vais ficar sabendo mais adiante.
Ricardo – Mas posso ter esperanças?
Anne – Todos os homens, espero eu, vivem de esperança.
Ricardo – Conceda-me usar este anel.
Anne – Aceitá-lo não quer dizer que eu esteja cedendo.
Ricardo – Olha como o meu anel abraça o teu dedo; é exatamente assim que o teu peito inclui o meu pobre coração. Usa os dois, pois ambos são teus. E, se este teu pobre e devoto servo pode ainda requisitar um último favor de tua graciosa mão, tu estarás confirmando a felicidade dele para todo o sempre.
Anne – O que é?
Ricardo – Que você me faça o favor de deixar essa triste incumbência para aquele que tem, mais do que ninguém, razões para prantear essa morte, e recolha-se à Casa de Crosby, onde, depois de enterrar este nobre Rei no Monastério de Chertsey com as devidas solenidades e molhar seu túmulo com minhas lágrimas de arrependimento, irei, o mais rápido possível, encontrar com você. Pelas mais diversas razões desconhecidas, eu suplico, conceda-me essa dádiva.
Anne – De todo o coração; e muito me alegra, também, ver que você se tornou assim penitente. Tressel e Berkeley, venham comigo.
Ricardo – Despeça-se de mim.
Anne – É mais do que você merece. Mas, já que você me ensina como agradá-lo, imagine que já me despedi.
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