O Rei está doente, fraco e melancólico, e seus médicos temem por sua vida.
Ricardo – Mas, ora, por São João, as notícias são mesmo péssimas. Ah, ele vem mantendo uma dieta perniciosa faz tempo, e tem exigido de sua real pessoa em excesso; é lamentável até mesmo pensar sobre isso. Onde está ele? Acamado?
Hastings – Sim, acamado.
Ricardo – Vá indo você na frente, que eu vou em seguida. [Sai Hastings.]
Ele não pode sobreviver, espero, mas não deve morrer antes que George seja empacotado e enviado por cavalos de posta para os céus. Vou ter com ele, para apressar ainda mais o seu ódio por Clarence, com mentiras feitas robustas por argumentos de peso, e, se eu não fracassar no meu real intento, Clarence não viverá para ver o dia de amanhã. Isso feito, que Deus tome o Rei Eduardo em seu reino de misericórdia e deixe o mundo para mim, para que eu possa nele me alvoroçar. Então eu caso com a filha mais nova de Warwick. Que importa que eu tenha lhe matado o marido e o pai dele? A maneira mais expedita de reparar os danos que causei a essa mulher é tornar-me seu marido e seu sogro.[9] O que pretendo fazer, nem tanto por amor, mas por um outro intento meu, guardado em segredo, o qual devo alcançar casando-me com ela. Mas, por ora, estou colocando o carro à frente dos bois. Clarence ainda respira, Eduardo ainda vive e reina. Quando eles tiverem partido, só então devo somar os meus ganhos. [Sai.]
Cena II – [Entra o corpo de Henrique VI[10] carregado em padiola, com escolta de Alabardeiros, e Lady Anne de luto, atendida por Tressel, Berkeley e outros Cavalheiros.]
Anne – Parem, larguem um pouco a vossa honorável carga (se é que se pode encontrar a honra envolta em mortalha em um cortejo fúnebre) enquanto eu por um momento pranteio, como pessoa devidamente enlutada, a queda prematura dos virtuosos Lancaster.[11] Pobre figura gelada de um santo rei, pálidas cinzas da Casa de Lancaster, sois vós, restos exangues, o que sobrou daquele sangue da realeza. Que seja lícito[12] eu invocar vosso fantasma para escutar os lamentos da pobre Anne, esposa do vosso Eduardo, esposa do vosso filho assassinado, apunhalado pela mesma mão que causou vossas feridas. Olhai, que nessas janelas por onde se despede a vossa vida despejo o impotente bálsamo de meus pobres olhos. Ah, amaldiçoada seja a mão que furou vossa carne; amaldiçoado o coração que teve a coragem de cometer tal ato; amaldiçoado o sangue que tirou o sangue daqui. Que um destino ainda mais horrendo do que o que eu desejo a cobras, aranhas, sapos e toda e qualquer criatura venenosa ou rastejante caia sobre esse odiado infeliz que nos torna a nós infelizes por vossa morte. Se ele algum dia tiver um filho, que seja um aborto: monstruoso, de nascimento prematuro, cujo aspecto feiíssimo e disforme possa assustar a mãe esperançosa à primeira vista, e que ele seja herdeiro de sua infelicidade. Se ele algum dia tiver uma esposa, que ela se sinta ainda mais sofrida pela morte do marido do que eu com a morte do meu jovem senhor e com a vossa morte. Venham agora, rumem em direção à abadia de Chertsey[13] com a sua santa carga, tomada da Catedral de São Paulo para ser lá enterrada. Mas, sempre que vocês se cansarem de carregar-lhe o peso, descansem, pois, enquanto isso, deitarei lágrimas sobre o corpo do Rei Henrique VI. [Entra Ricardo.]
Ricardo – Parados, vocês que carregam o corpo. Podem descansar a sua carga.
Anne – Que praticante de magia negra conjura esse demônio para que venha interromper atos de devoção e de misericórdia?
Ricardo – Canalhas! Larguem o corpo, ou juro por São Paulo que também vira corpo aquele que me desobedecer!
Alabardeiro – Milorde, recue e deixe o féretro passar.
Ricardo – Cachorro de maus modos, me obedece quando eu der ordens! Ergue a tua alabarda mais alta que o meu peito, ou juro por São Paulo que te ponho no chão a golpes e te chuto daqui a pontapés, miserável, por tua impertinência.
Anne – Mas, como? Vocês estão tremendo? Todos com medo? Ai de mim, eu não os censuro, pois vocês são mortais, e olhos mortais não aguentam encarar o diabo. Xô, fora, tu aí, pavoroso embaixador do inferno! Tens poder apenas sobre o corpo mortal dele; a alma dele, esta tu não podes tê-la; portanto, vai andando, fora, xô!
Ricardo – Minha doce santa, por piedade, não seja maledicente, não pronuncie calúnias, não rogue pragas.
Anne – Demônio sujo, pelo amor de Deus, fora daqui, e não nos atormentes, pois transformaste a terra, este mundo feliz, em teu inferno particular, repleto de gritos lancinantes e berros blasfemos. Se te deleitas em assistir aos teus atos hediondos, contempla este exemplo ilustrativo de tuas carnificinas. Ah, cavalheiros! Vejam, vejam como as feridas do falecido Rei Henrique abrem seus lábios coagulados e sangram novamente.[14] Envergonha-te, envergonha-te, excrescência de deformidade imunda, pois é tua presença que faz vazar este sangue de veias geladas e vazias onde nenhum sangue habita. O teu ato, desumano e anormal, provoca este dilúvio altamente anormal. Ah, meu Deus! Vós, que criastes este sangue, vingai esta morte. Ah, terra! Vós, que ora bebeis deste sangue, vingai esta morte. Ou os céus enviam um raio para liquidar com o assassino, ou a terra abre-se aos pés dele e engole-o bem ligeiro, assim como vós, terra, engolis o sangue deste bom Rei chacinado pelo braço dele, um braço governado pelo inferno.
Ricardo – Lady Anne, você não conhece as regras da caridade, que transforma o mal em bem, as pragas em bênçãos.
Anne – Canalha, tu não conheces as leis de Deus, nem reconheces as leis dos homens. Nem mesmo a mais selvagem das feras desconhece um mínimo de piedade.
Ricardo – Mas eu desconheço e, portanto, não sou nenhuma fera.
Anne – Ah, que maravilha quando os diabos falam verdades!
Ricardo – Mais maravilhoso ainda é quando os anjos ficam assim tão irados.
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