A Morte é meu herdeiro.
Páris
Esperei tanto por esta manhã
E me deparo com um quadro desses?
Sra. Capuleto
Oh, dia horrível, infeliz, maldito!
Hora pior que todas que este mundo
Já viu em sua peregrinação.
Uma filha, uma só, a pobrezinha,
Minh’única alegria, meu conforto,
Me foi tirada pela Morte cruel.
Ama
Miséria! Dia triste, dia odioso!
Oh dia lamentável, triste, triste!
O pior que já vi em toda a vida.
Oh dia de terror, dia de ódio!
Jamais houve outro dia negro assim.
Ah, dia de tristeza, de tristeza.
Páris
Enganado, ofendido, divorciado.
Morte odienta, por ti fui enganado,
Derrotado por tua crueldade.
Amor! Vida! Não vida, amor na morte!
Capuleto
Desprezado! Odiado! Sim, e morto!
Tempo infeliz, por que chegaste agora
Pr’assassinar nossa solenidade?
Minha filha! Mais que filha, minh’alma!
’Stá morta, ai, ai, morreu a minha filha!
E com ela se enterra a alegria.
Frei
Mas o que é isso? A cura do terror
Não ’stá em mais terror. O céu e vós
Tinham partes iguais nessa donzela;
E se agora ela é toda do céu,
Para a donzela isso é um bem maior.
A vossa parte perde-se com a morte,
Mas o céu tem a sua para sempre.
O vosso esforço foi aprimorá-la.
Pois vosso céu era vê-la importante;
E agora vós chorais vendo-a ganhar
O próprio céu, para além dessas nuvens?
Amar assim é mal-amar a filha,
Enlouquecendo ao vê-la assim tão bem.
Não casa bem quem casa muito tempo;
Casa melhor quem casa e morre cedo.
Secai o pranto e cobri com rosmaninho
Seu corpo lindo e como manda o uso,
Levai-a à tumba com as melhores vestes.
Mentes tolas nos dizem pra chorar,
Mas do pranto a razão tem de ganhar.
Capuleto
Tudo aquilo pra festa encomendado
Agora em funeral é transformado:
Nossa música em dobre melancólico,
Nossa boda feliz em triste enterro,
Nossos hinos agora são lamentos,
Nossas grinaldas hoje são coroas
E tudo transformou-se em seu contrário.
Frei
Entrai, senhor; e vós, minha senhora.
Vá, senhor Páris. Aprontai-vos todos
Para levar à cova a linda morta.
O céu vos pune por alguma falta;
Não se contesta vontade tão alta.
(Saem todos menos a Ama e os músicos, ela cobrindo Julieta com rosmaninho e fechando o cortinado.)
1º Músico
Melhor guardar a flauta e ir embora.
Ama
Vocês são bons rapazes; guardem tudo,
Pois já viram que o caso é muito triste.
1º Músico
Como as flautas, o caso ’stá encerrado.
(Sai a Ama.)
(Entra Pedro.)
Pedro
Músicos, música! “Alegrias do coração!” “Alegrias do coração!” Se querem que eu viva, toquem “Alegrias do coração!”
1º Músico
Mas por que “Alegrias do coração”?
Pedro
Ah, músicos, porque sozinho meu coração só está tocando “Tristezas do coração”. Por favor, toquem qualquer bobagem alegre para me confortar.
1º Músico
Bobagem nós não tocamos! Menos ainda em horas como esta.
Pedro
Então não tocam?
1º Músico
Não.
Pedro
Pois vão acabar sentindo o meu toque!
1º Músico
E que toque vai nos dar?
Pedro
Em dinheiro não tocam; só em couro; toco pra fora como saltimbancos ordinários.
1º Músico
Quem, você? Um criado ordinário?
Pedro
Pois vai sentir minha adaga ordinária na cabeça. Eu vou do-ré-mi vocês; pode notar.
1º Músico
Se nos mi-fá, vai receber nossas notas.
2º Músico
Melhor guardar a faca e usar o bestunto.
Pedro
Vou liquidá-los com uma bestuntada. Dou-lhes uma surra com bestunto de ferro, e descanso o ferro da faca. Falem feito homem.
Quando a dor o nosso coração maltrata
E a tristeza nos vem oprimir a mente,
Então a música com seu som de prata...
Por que som de prata? Por que “a música com seu som de prata”?
O que diz, Simão Viola?
1º Músico
Ora, é que a prata tem um som bem bonito.
Pedro
Muito bem. E você, Hugo Rabeca?
2º Músico
Eu digo que é “som de prata” porque os músicos tocam por prata.
Pedro
Bom, também. E João do Grito?
3º Músico
Eu não sei o que dizer.
Pedro
É mesmo! Você é cantor. Mas eu explico. É “música com som de prata” porque os músicos não ganham ouro pra tocar.
Quando a música com seu som de prata
Ajuda a curar tudo de repente.
(Sai.)
1º Músico
Mas que sujeito mais pestilento.
2º Músico
Que vá se enforcar.
Vamos, temos de esperar pelos que choram e pelo jantar.
(Saem.)
Ato V
Cena I
(Entra Romeu.)
Romeu
Se o otimismo do sono é confiável,
Meus sonhos me predizem boas novas.
O senhor do meu peito bate alegre
Em seu trono, feliz — que é coisa rara —
E o pensamento voa com esperancas.
Sonhei que o meu amor me achava morto —
Com a licença do sonho, o morto pensa! —
E com seus lábios me insuflou tal vida,
Que eu revivi e era imperador.
Deus, que doce há de ser o amor em si,
Se a sua sombra nos faz tão felizes.
(Entra Baltasar, criado de Romeu, de botas.)
Notícias de Verona! Baltasar!
Trouxe carta pra mim de Frei Lourenço?
Como está minha dama? E o meu pai?
Como está Julieta? Sim de novo,
Pois não há mal se ela estiver bem.
Baltasar
Então ela está bem, e não há mal.
Seu corpo jaz na tumba Capuleto,
E sua parte imortal está com os anjos.
Eu a vi sepultada com os parentes,
E logo cavalguei para encontrá-lo.
Peço perdão por lhe trazer tristeza,
Mas se eu sou correio é por suas ordens.
Romeu
Verdade? Então eu desafio os astros!
Leve papel e tinta à minha casa,
E cavalos, também. Parto esta noite.
Baltasar
Meu senhor, eu peço, seja paciente;
A sua louca palidez sugere
Algum desastre.
Romeu
Isso é engano seu.
Deixe-me, e vá fazer o que eu pedi.
O frade não mandou nenhuma carta?
Baltasar
Não, senhor.
Romeu
Não importa; pode ir.
Veja os cavalos, que eu o encontro já.
(Sai Baltasar.)
Julieta, hoje eu durmo com você.
Vamos ver como. A maldade penetra
Veloz na mente do desesperado.
Eu me lembro que há um boticário
Que mora por aqui — há pouco o vi,
Em andrajos, com o ar preocupado,
Catando ervas. Com o aspecto esquálido,
Sua miséria lhe exibia os ossos.
Em sua loja pendem tartarugas,
Jacarés empalhados, outras peles
De estranhos peixes; e nas, prateleiras,
Uma fila de caixas já vazias,
Potes, bexigas e sementes secas,
Pedaços de barbantes, rosas secas,
Se espalham para disfarçar o quadro.
Notando essa penúria, pensei eu:
“Se alguém, agora, quisesse um veneno
Proibido com morte aqui em Mântua,
Esse é o infeliz que o poderia obter.”
Prenunciava esta necessidade!
Pois ele há de vender-me o que eu preciso.
Parece-me que é esta a casa dele.
É feriado; a loja está fechada.
Boticário! Onde está?
(Entra o Boticário.)
Boticário
Quem grita assim?
Romeu
Venha cá, homem. Sei que não tem nada;
Eis quarenta ducados pra me dar
Um pouco de veneno, coisa rápida,
Que se espalhe por veias e artérias
E faça quem o tomar cair morto,
E o hálito fugir de tronco e membros
Com a violência e a velocidade
Que a bala sai do ventre do canhão.
Boticário
Tenho a droga mortal, porém as leis
Dão morte para quem a fornecer.
Romeu
E você, tão coberto de desgraças,
Teme morrer? O seu rosto é de fome;
Pobreza e opressão comem seus olhos;
Desprezo e mendicância é que o vestem;
As leis do mundo não lhe têm amor:
Nenhuma lei do mundo o fará rico;
Pois, pobre, quebre a lei e aceite isto.
Boticário
Consinto por pobreza, não vontade.
Romeu
Eu não pago a vontade, só a pobreza.
Boticário
Desmanche este veneno em qualquer líquido.
Tome-o, e até com a força de mais vinte,
Ele o despacha no mesmo momento.
Romeu
Eis o seu ouro, um veneno pra alma
Que mata muito mais por este mundo
Que este pó, que ninguém pode vender.
Você comprou veneno, não vendeu;
Adeus, compre comida e ganhe peso.
Eu não comprei veneno, comprei cura;
E bebo ao meu amor, na sepultura. (Saem.)
Cena II
(Entra Frei João.)
Frei João
Bendito franciscano! Irmão! Olá!
(Entra Frei Lourenço.)
Frei
Parece-me que é a voz de Frei João.
Chegou de Mântua? O que diz Romeu?
Ou, se escreveu, dê-me aqui sua carta.
Frei João
Eu procurei um outro irmão descalço,
Da nossa Ordem, para ir comigo,
Que aqui viera visitar doentes.
Ao encontrá-lo, a guarda da cidade,
Pensando que nós tínhamos estado
Onde grassava a peste infecciosa,
Selou a porta e nos prendeu lá dentro;
E ali parou minha ida para Mântua.
Frei
Quem levou minha carta pra Romeu?
Frei João
Eu não pude mandá-la — aqui está —
E nem tampouco trazê-la de volta,
Tamanho era o seu medo da infecção.
Frei
Mas que infortúnio! Pela minha ordem,
A carta era mais séria que um recado;
Muito importante, o fracasso na entrega
É muito perigoso. Frei João,
Arranje um pé de cabra e traga logo
À minha cela.
Frei João
Eu vou e volto. (Sai.)
Frei
Tenho de ir sozinho ao monumento.
Em três horas Julieta estará desperta;
Vai zangar-se demais porque Romeu
Não chegou a saber do acontecido.
Vou escrever de novo para Mântua;
Ela espera Romeu na minha cela —
Morta-viva na tumba, pobre dela. (Sai.)
Cena III
(Entram Páris e seu pajem, com flores e água perfumada.)
Páris
Dê-me a tocha. Vá embora e fique longe.
É melhor apagar, pr’eu não ser visto.
Fica parado ali, perto das árvores;
Mas atenção, e ouvido no chão,
Pra que não pise alguém no cemitério
Cujo chão, tão cavado, é leve e solto —
Sem que o ouças. Dê um assovio
pra sinal, quando alguém ’stiver chegando.
Dê-me as flores; só faça o que mandei.
Pajem
Tenho até medo de ficar sozinho
No cemitério. Mas vou me arriscar.
(Afasta-se.)
(Páris cobre o túmulo com flores.)
Páris
Flores pro leito dessa noiva em flor.
Ai, ai, o seu dossel é pó e pedra,
Que eu regarei com água a cada noite,
Ou então com meu pranto e meus suspiros.
Meu pranto toda noite se renova,
Cobrindo eu com flores sua cova.
(O pajem assovia.)
Esse é o aviso que vem vindo alguém;
Que pé maldito vem cá esta noite,
Cortando o rito deste meu lamento?
Com uma tocha? Noite, então oculta-me.
(Páris se afasta.)
(Entram Romeu e Baltasar, com tocha, picareta e pé de cabra.)
Romeu
Dê-me aqui a picareta e o pé de cabra.
Tome aqui esta carta. De manhã
Vá entregá-la a meu senhor e pai.
Dê-me a luz. Pela minha vida eu peço,
Fique longe, não importa o que aconteça,
Nem me interrompa no que vou fazer.
Em parte eu desço a esse leito de morte
Só para ver o rosto de quem amo;
Porém ainda mais pra retirar
De seu dedo um anel que necessito
Pr’algo importante. Assim sendo, vá embora.
Se chegar perto para espionar,
Só pra saber que mais eu vou fazer,
Juro por Deus que eu o estraçalho,
Cobrindo o cemitério com os pedaços;
Este momento é só de desespero,
’Stou mais feroz e tão mais implacável
Que o tigre magro ou o rugido do mar.
Baltasar
Eu ’stou indo, e não venho perturbá-lo.
Romeu
É gesto de amizade. Tome isto.
Viva e prospere. Agora adeus, rapaz.
Baltasar
Mesmo assim, eu me escondo por aqui;
Temo sua intenção, pelo que ouvi.
(Baltasar afasta-se.)
Romeu
Goela odiosa, útero da morte,
Repleta com o melhor que há na terra,
Assim eu forço a sua boca a abrir-se
E a obrigo a engolir mais alimento.
(Romeu abre a tumba.)
Páris
Esse é o maldito Montéquio banido,
Que assassinou o primo de Julieta —
Razão, segundo dizem, de sua morte.
E ei-lo aí, pr’algum ato vergonhoso
Com seus corpos. Vou interceptá-lo.
Pare o seu ato sujo, vil Montéquio:
Vingança segue para além da morte?
Maldito condenado, aqui o prendo.
Obedeça-me logo, pra morrer.
Romeu
Pois foi para morrer que vim aqui.
Meu jovem, não provoque o desespero.
Fuja daqui. Pense um pouco nos mortos;
Permita que o assustem; eu lhe imploro,
Não force outro pecado a me pesar,
Provocando-me a fúria.
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