Vá-se embora.
Juro que o amo mais do que a mim mesmo,
Pois ’stou aqui armado contra mim.
Não fique, parta, fuja pra dizer
Que a piedade de um louco o fez viver.
Páris
Desafio a sua jura;
E aqui o prendo por ser criminoso.
Romeu
Ainda me provoca? Venha, então!
(Lutam.)
Pajem
Estão lutando, e eu vou chamar a guarda.
(Sai o Pajem.)
Páris
Eu estou morto; ai, se tem piedade,
Põe-me na tumba, ao lado de Julieta.
(Páris morre.)
Romeu
Assim farei; deixe-me ver seu rosto.
O primo de Mercúcio, o nobre Páris.
Que disse o pajem quando, alma tonta,
Não lhe dava atenção? Creio que disse
Que Páris ia casar com Julieta.
Não disse isso? Ou será que sonhei?
Fiquei louco, ao falar de Julieta,
E pensei que foi isso? Dê-me a mão,
Inscrita como a minha no infortúnio.
Hei de enterrá-lo em cova triunfal.
Cova? Não; junto a um esplendor de luz,
Pois jaz aqui Julieta; e sua beleza
Faz desta tumba festa luminosa.
Morte, deita-te aí, junto a esse morto.
Quantas vezes, logo antes de morrer,
Um homem fica alegre? É o que chamam
De fagulha mortal. E será isto
Tal fagulha? Meu amor, minha esposa,
A morte, que sugou-lhe o mel dos lábios,
Inda não conquistou sua beleza.
Não triunfou. A flâmula do belo
Inda é rubra em seus lábios e seu rosto,
E a morte branca não tremula neles.
Teobaldo, ’stás aí, banhado em sangue?
Que honraria mais posso eu prestar-te,
Que, co’a mão que ceifou-te a juventude,
Cortar a de quem foi teu inimigo?
Primo, perdão. Querida Julieta,
Por que tão bela ainda? Devo crer
Que a morte etérea está apaixonada,
E o esquelético monstro a prende aqui
Pra, neste escuro, ser a sua amada?
Só por medo que sim aqui eu fico,
E jamais do negror deste palácio
Hei de partir. Aqui sempre estarei,
Com seu criados vermes. Aqui mesmo
Eu hei de repousar por todo o sempre,
E libertar da maldição dos astros
A carne exausta. Olhos, um olhar.
Braços, o último abraço! E vós, ó lábios,
Portal do alento, selai com este beijo
Pacto eterno com a Morte insaciável.
Vem, meu caminho amargo, insosso guia.
Piloto insano atira neste instante
Contra as rochas a barca desgastada.
Ao meu amor! (Bebe.) Honesto boticário,
Rápida é a droga. E assim, com um beijo, eu morro.
(Cai.)
(Entra Frei Lourenço, com lanterna, pé de cabra e pá.)
Frei
São Francisco me ajude! Quantas vezes
Tropecei esta noite em sepulturas.
Quem está aí?
Baltasar
Um amigo, um conhecido.
Frei
Deus o abençoe. Diga aqui, amigo,
Que fraca luz é aquela que ilumina
Ossadas e caveiras? Me parece
Que vem do mausoléu dos Capuletos.
Baltasar
É de lá mesmo. ’Stá lá o meu senhor,
A quem tanto aprecia.
Frei
Quem?
Baltasar
Romeu.
Frei
’Stá lá há quanto tempo?
Baltasar
Meia hora.
Frei
Vamos à tumba.
Baltasar
Não senhor. Não ouso.
Meu amo pensa que eu fugi daqui,
E até me ameaçou de me matar
Se eu olhasse pro que ’stá fazendo.
Frei
Pois bem, eu vou sozinho. Estou com medo
De acontecer uma infelicidade.
Baltasar
Enquanto eu cochilava neste canto,
Sonhei que o amo e um outro cavalheiro
Lutavam e o meu amo o assassinava.
(Frei Lourenço se inclina, vê sangue e espadas.)
Frei
Romeu! Que sangue é esse aqui que mancha
A pedra do portal deste sepulcro?
E o que são essas lâminas sem dono,
Rubras assim neste local de paz?
Romeu, pálido assim, e também Páris?
Afogados em sangue? Que hora má
É culpada de fatos como esse?
Ela se move.
(Julieta se levanta.)
Julieta
Meu frade amigo, onde está meu senhor?
Lembro-me bem de onde devo estar,
E aqui estou. Onde está meu Romeu?
Frei
Ouço ruídos. Saia logo, amiga,
Deste ninho de morte, de contágio,
E de sono anormal. Poder maior
Do que podemos superar derrota
As nossas intenções. Vamos embora.
A seus pés seu marido caiu morto;
Páris também. Eu lhe darei destino
Em casa santa de religiosas.
Nada pergunte agora; a guarda chega.
Vamos, Julieta. Eu não ouso ficar.
Julieta
Pois pode ir. Eu não vou me afastar.
(Sai Frei Lourenço.)
Que prende o meu amor em sua mão?
Um veneno lhe deu descanso eterno.
Malvado! Nem sequer uma gotinha
Para eu segui-lo? Vou beijar-lhe os lábios;
Talvez que neles reste algum veneno
Que me restaure a minha antiga morte.
(Beija-o.)
Que lábios quentes!
Guarda
Por onde, rapaz?
Julieta
Quem é? Depressa! Ah, lâmina feliz!
Enferruja em meu peito, pra que eu morra!
(Ela se apunhala e cai.)
(Entram o Pajem e guardas.)
Pajem
É aqui. Veja a tocha, ali, queimando.
1º Guarda
Há sangue aqui no chão. Procurem fora;
Vão logo e prendam todos que encontrarem.
(Saem alguns guardas.)
Que quadro horrível! Eis o conde, morto,
Julieta sangrando e recém-morta,
Tendo sido enterrada há já dois dias.
Vão chamar os Montéquios. Deem busca!
(Saem alguns guardas.)
Neste chão jazem todas essas dores,
Mas a base de tanto sofrimento
Só saberemos com explicações.
(Entram vários guardas, com Baltasar.)
2º Guarda
Lá fora estava o pajem de Romeu.
1º Guarda
Segure-o até o príncipe chegar.
(Entram outros guardas com Frei Lourenço.)
3º Guarda
Eis um frade que, arfante, treme e chora;
Tiramos dele a pá e a picareta,
Quando o vimos sair do cemitério.
1º Guarda
Muito suspeito. Prenda-o também.
(Entra o Príncipe, com séquito.)
Príncipe
Que mal já nos desperta assim tão cedo,
Cortando o nosso sono matinal?
(Entram Capuleto e a senhora Capuleto, com criados.)
Capuleto
O que é que todos gritam por aí?
Sra. Capuleto
Nas ruas há quem grite só “Romeu”,
Outros, “Julieta”, “Páris”. Todos correm
Como loucos pro nosso mausoléu.
Príncipe
Que medo é esse, que assim nos assusta?
1º Guarda
Senhor, eis ali, morto, o conde Páris,
Romeu, morto, e Julieta, morta antes,
Morreu mais uma vez e inda ’stá quente.
Príncipe
Tais mortes têm de ser esclarecidas.
1º Guarda
Eis um frade e um pajem de Romeu,
Ambos com ferramentas para abrir
As tumbas desses mortos.
Capuleto
Veja, mulher: Julieta ’stá sangrando!
A faca se enganou, pois sua casa,
Que está vazia nas costas de Montéquio,
Por erro afundou no seio dela.
Sra. Capuleto
Esse quadro pra mim é como um sino
Que me chama a velhice para a tumba.
(Entra Montéquio com criados.)
Príncipe
Vinde, Montéquio, cedo levantado,
Ver vosso filho cedo aqui caído.
Montéquio
Ai, ai, senhor, perdi hoje a esposa;
O exílio do filho a sufocou.
Que outra dor inda ataca este velho?
Príncipe
Olhai, que haveis de ver.
Montéquio
Mal-educado! Que modos são esses,
A ir na minha frente para a cova?
Príncipe
Calem-se os ultrajados um pouco,
Até que esclareçamos tais enigmas
E, conhecendo-lhes causas e fontes,
Aqui possamos comandar a dor,
E guiar-vos — talvez até pra morte.
Até então que a paciência impere.
Trazei aqui, agora, os dois suspeitos.
Frei
Sou deles o maior e o menos apto;
Porém o mais suspeito porque tudo,
Lugar e hora, fala contra mim,
No caso desse vil assassinato.
Aqui ’stou pr’acusar e defender,
Eu mesmo condenado e perdoado.
Príncipe
Diga, então, que sabe do ocorrido.
Frei
Eu serei breve; a vida que me resta
Não dá para relatos tediosos.
Romeu, aqui, casou-se com Julieta;
Ela, ali morta, é sua fiel esposa.
Eu os casei, e o dia dessas bodas
Foi fatal pra Teobaldo, cuja morte
Fez o noivo exilar-se da cidade.
Por ele, não por Teobaldo, ela chorava;
Os senhores, pra aliviar-lhe a dor,
Tentaram obrigá-la a se casar
Com o conde Páris. Ela então buscou-me.
E em desespero implorou por meio
De livrar-se de novo matrimônio;
Se não, matava-se, na minha cela.
Então dei-lhe — segundo a minha arte —
Uma droga pro sono, que operou
Co’o esperava, pois a encobriu
Com o aspecto da morte. Nesse meio-tempo
Escrevi a Romeu pra que viesse
Aqui, nesta noite apavorante,
Pr’a judar-me a tirá-la dessa tumba
Quando cessasse o efeito do veneno.
No entanto, o portador de minha carta
Infelizmente nunca chegou lá.
E devolveu-me ontem a missiva.
Sozinho, pois, na hora de acordar,
Vim eu para tirá-la do jazigo,
No intento de guardá-la em minha cela
Até poder mandar chamar Romeu.
Porém quando cheguei, quase na hora
De ela acordar, jaziam já aqui
O nobre Páris e o fiel Romeu.
Ela desperta; eu peço-lhe que fuja
E aceite com paciência o ato do céu.
Nesse momento um ruído assustou-me,
Ela não quis sair; desatinada,
Ao que parece agiu contra si mesma.
Isso é o que sei. Da boda, a Ama sabe;
E se algo nessa trama não foi bem
Por minha causa, que esta velha vida
Vá antes de seu tempo ao sacrifício,
Segundo o alto rigor das suas leis.
Príncipe
A sua fama sempre foi de santo.
O que declara o pajem de Romeu?
Baltasar
Contei ao amo a morte de Julieta;
E ele veio de Mântua num galope,
Vindo direto para o mausoléu.
Disse pr’eu dar esta carta a seu pai
Pela manhã, e ameaçou matar-me
Se não me fosse e o deixasse só.
Príncipe
Dê-me a carta, pra que eu a examine.
Aonde está o criado do conde
Que foi chamar a guarda? Diga-me agora:
O que queria o conde morto aqui?
Pajem
Trazia flores pra tumba da noiva,
E disse pr’eu ficar bem afastado.
Chegou um outro para abrir a tumba,
E meu amo, depois, lutou com ele.
Então corri para chamar a guarda.
Príncipe
O que o frade narrou está na carta:
O seu amor, a notícia da morte,
E diz que ia comprar certo veneno
De um pobre boticário e que, com ele,
Viria aqui, pra morrer com Julieta.
Onde estão esses dois inimigos?
Capuleto e Montéquio, vede aqui
Que maldição recai em vosso ódio,
Pro céu matar, com amor, vossa alegria.
E eu, por não sustar vossa disputa,
Perdi dois primos. Todos são punidos.
Capuleto
Irmão Montéquio, dai-me a vossa mão
É este o dote que traz minha filha;
Nada mais posso dar.
Montéquio
Pois posso eu.
Farei por ela estátua de ouro puro.
Enquanto esta cidade for Verona
Não haverá imagem com o valor
Da de Julieta, tão fiel no amor.
Capuleto
Romeu, em ouro, estará a seu lado,
Que o ódio foi também sacrificado.
Príncipe
Uma paz triste esta manhã traz consigo;
O sol, de luto, nem quer levantar.
Alguns terão perdão, outros castigo;
De tudo isso há muito o que falar.
Mais triste história nunca aconteceu
Que esta, de Julieta e seu Romeu.
Sobre o autor
William Shakespeare (26 de abril de 1564 – 23 de abril de 1616) foi um poeta e dramaturgo inglês, tido como o maior escritor do idioma inglês e o mais influente dramaturgo do mundo.
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