Sandokan, Os Mistérios da Floresta Negra
Sandokan, Os Mistérios da Floresta Negra
Emilio Salgari
Primeira parte - Os mistérios das Sunderbunds
Capítulo 1 - O assassínio
O Ganges, esse famoso rio celebrado pelos indianos, antigos e modernos, cujas águas são por aquele povo consideradas sagradas, depois de ter sulcado as montanhas nevadas do Himalaia e as ricas províncias de Sirinagar, de Deli, de Odhe, de Bahare e de Bengala, a duzentas e vinte milhas do mar divide-se em dois braços, formando um delta gigantesco, intrincado, maravilhoso e talvez único.
A imponente massa das águas divide-se e subdivide-se num sem-número de riachos, de canais grandes e pequenos, que sulcam de todas as formas possíveis a imensa extensão de terras entaladas entre o Hugly, o verdadeiro Ganges, e o Golfo de Bengala. Daí resulta a existência duma infinidade de ilhas e ilhéus e bancos, os quais, para o lado do mar, tomam o nome de Sunderbunds.
Não há nada mais desolador, mais estranho e mais aterrador do que a visão destas Sunderbunds. Nem cidades, nem aldeias, nem cabanas se vislumbram de sul a norte, de leste a ocidente, não se vê mais nada senão imensas plantações de bambus espinhosos, apertados uns contra os outros, com as pontas a ondular ao sopro do vento, empestado pelas exalações insuportáveis de milhares e milhares de corpos humanos que apodrecem nas águas envenenadas dos canais.
Raramente se vê um baniano elevar-se acima daquelas gigantescas canas; e menos ainda se vê um grupo de colhedores de mangas, de pescadores ou de nagas surgirem entre os pântanos; nem ao olfacto nos chega o perfume suave do jasmim, do chambaçal da mussenda, que timidamente despontam naquele caos vegetal.
De dia, reina soberanamente um silêncio gigantesco, fúnebre, que incute terror aos mais audazes; de noite, pelo contrário, é um alarido horrível de urros, rugidos, silvos e assobios, que gela o sangue.
Dizei ao bengalês que ponha os pés nas Sunderbunds e ele recusar-se-á; prometei-lhe cem, duzentas, quinhentas rúpias e não conseguireis demover a sua inabalável decisão. Dizei ao molango que vive nas Sunderbunds, desafiando a cólera e a peste, as febres e o veneno daqueles ares empestados, que entre naquelas selvas, e, tal como o bengalês, também ele se recusará. O bengalês e o molango têm razão; penetrar naquelas selvas é ir ao encontro da morte.
De facto, é ali, entre aqueles amontoados de espinhos e de bambus, no meio daqueles pântanos e daquelas águas amarelas, que se ocultam os tigres, espiando a passagem das canoas, e até dos barcos, para se abaterem sobre o tombadilho e levar o barqueiro ou o marinheiro que ousa mostrar-se; é ali que nadam e espiam a presa horríveis e gigantescos crocodilos, sempre ávidos de carne humana; é por ali que vagueia o formidável rinoceronte, a quem tudo faz sombra e irrita até à loucura; e é ali que vivem e morrem as numerosas variedades das serpentes indianas, entre as quais o rubdira mandali, cuja mordedura faz suar sangue, e a cobra que tritura um boi entre os seus anéis; e é ali, enfim, que às vezes se esconde o tugue indiano, esperando ansiosamente a chegada de um homem qualquer para o estrangular e oferecer a vida extinta à sua terrível divindade!
Apesar disso, na noite de 16 de maio de 1855, uma gigantesca fogueira crepitava nas Sunderbunds meridionais, precisamente a trezentos ou quatrocentos passos das três bocas do Mangal, um rio lodoso que se separa do Ganges para lançar as suas águas no Golfo de Bengala.
Aquele clarão, que se destacava vivamente sobre o fundo escuro do céu e dava um efeito fantástico, iluminava uma vasta e sólida cabana de bambu, junto da qual dormia, envolto num grande dootée de chites estampado, um indiano de estatura atlética, cujos membros, musculosos e bem desenvolvidos, denotavam uma força fora do comum e uma agilidade felina.
Era um belo tipo de bengalês, dos seus trinta anos, de cor amarelada e extremamente reluzente, untado de fresco com óleo de coco; os traços do seu rosto eram belos, os lábios cheios, sem serem grossos, e deixando entrever uma admirável dentadura; o nariz bem torneado, a fronte alta, salpicada de linhas de cinza, sinal distintivo dos adeptos de Xiva.
Todo o seu conjunto exprimia uma energia rara e uma coragem extraordinária, que em geral falta aos seus compatriotas.
Como se disse, o homem dormia, mas o seu sono não era tranqüilo. Grandes gotas de suor perlavam a sua fronte, que por vezes se franzia e se ensombrava; o largo peito erguia-se impetuosamente, descompondo o dootée que o envolvia; as suas mãos, pequenas como as duma mulher, cerravam-se convulsamente e muitas vezes as levava à cabeça, tirando o turbante e pondo a descoberto o crânio, cuidadosamente rapado.
Palavras truncadas, frases bizarras, saíam de quando em quando dos seus lábios, pronunciadas com um tom de voz doce e apaixonado.
“Ei-la”, dizia ele, sorrindo. “O sol esconde-se atrás dos bambus... o pavão cala-se, levanta-se o marabu e uiva o vento. Porque não se mostra?... Que fiz eu?
Não é este o lugar?... Não é aquela a mussenda de folhas cor de sangue?... vem, vem, ó doce aparição... eu sofro, sabes, sofro e anseio pelo instante em que possa voltar a ver-te.”
“Ah! Ei-la, ei-la!... os seus olhos azuis olham para mim, os seus lábios sorriem... Oh! Como é divino aquele sorriso! Minha celeste visão, porque permaneces muda, diante de mim? Porque me olhas assim?... Não tenhas medo de mim: sou Tremal-Naik, o caçador de serpentes da floresta negra... Fala, fala, deixa que eu ouça a tua doce voz... O sol declina, as trevas descem como corvos sobre os bambus... Não desapareças, não quero, não!... Não!... Não!...”
O indiano soltou um grito agudo e no seu rosto desenhou-se uma viva angústia.
Ao som daquele grito, saiu da cabana, a correr, um segundo indiano. Era magro e de estatura bastante mais baixa do que o homem adormecido; os seus braços e as suas pernas assemelhavam-se a bastões nodosos cobertos de couro. O tipo altivo, o olhar turvo, o curto languti que lhe cobria os flancos, as argolas que pendiam das suas orelhas, tudo, em suma, o dava a conhecer como sendo um marata, povo belicoso da índia ocidental.
“Pobre patrão”, murmurou ele, olhando para o adormecido. “Quem sabe que terrível sonho perturba o seu sono!”
Reanimou o fogo, depois sentou-se junto do patrão, agitando docemente um dubgah de belíssimas penas de pavão.
“Que mistério”, recomeçou o adormecido, com voz sufocada. “Parece-me ver manchas de sangue!... Doce visão, foge daí... enches-te de sangue. Por que todo aquele vermelho?... Por que todos aqueles laços?... Querem então estrangular alguém? Que mistério é este?”
“Que é que ele diz?”, perguntou a si próprio o marata, surpreendido.
“Sangue, visões, laços!...
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