Que sonho este!”

De súbito, o adormecido estremeceu; arregalou os olhos, cintilantes como dois diamantes negros, e sentou-se.

“Não!... Não!...”, exclamou com voz rouca. “Não quero!”

O marata olhou-o compassivamente.

— Patrão—murmurou ele.—que tens?

O indiano pareceu voltar a si. Fechou os olhos. Depois voltou a abri-los, fixando o marata no rosto.

— Ah! És tu, Kammamuri!—exclamou.

— Sim, patrão.

— Que fazes tu aqui?

— Velo por ti e enxoto os mosquitos.

Tremal-Naik aspirou com força o ar da noite, passando repetidas vezes as mãos pela fronte.

— Onde estão Hurti e Aghur?—perguntou, após instantes de silêncio.

— Na selva. Ontem à noite descobriram os rastos de um grande tigre e esta manhã saíram a caçá-lo.

— Ah!—exclamou surdamente Tremal-Naik.

A fronte enrugou-se-lhe e um profundo suspiro, que parecia um mugido sufocado, veio morrer-lhe nos lábios secos.

— Que tens, patrão?—perguntou Kammamuri.—tu estás mal.

— Não estou.

— Mas, enquanto dormias, lamentavas-te.

— Eu?

— Sim, patrão, falavas de visões estranhas.

Um sorriso amargo aflorou aos lábios do caçador de serpentes.

— Sofro, Kammamuri—disse ele, com raiva.—oh! Mas sofro muito!

— Eu sei, patrão.

— Como o sabes?

— Há quinze dias que te observo e vejo na tua fronte rugas profundas. Andas triste, taciturno. Antigamente não eras assim triste.

— É verdade, Kammamuri.

— Que dor pode afligir o meu patrão? Estás talvez cansado de viver na selva?

— Não digas isso, Kammamuri. Foi aqui, nestes desertos de espinheiros, nestes pântanos, na terra dos tigres e das serpentes, que eu nasci e cresci; é aqui, na minha querida selva, que hei-de morrer.

— E então?

— É uma mulher, uma visão, um fantasma!

— Uma mulher—exclamou Kammamuri, surpreendido.—disseste “uma mulher”?

Tremal-Naik baixou a cabeça em sinal de assentimento e apertou fortemente a fronte entre as mãos, como se quisesse sufocar algum mau pensamento.

Durante alguns minutos reinou entre ambos um silêncio fúnebre, apenas quebrado pelo murmúrio do rio, que se atirava contra as margens, e pelos gemidos do vento que acariciava a selva imensa.

— Mas onde viste essa mulher?—perguntou finalmente Kammamuri.—Onde, se a selva não tem senão tigres a habitá-la?

— Vi-a na selva, Kammamuri—disse Tremal-Naik, com voz surda.—Era uma tarde, oh! Nunca esquecerei aquela tarde, Kammamuri! Eu procurava as serpentes nas margens dum regato, lá em baixo, justamente no sítio em que os bambus são mais espessos, quando a vinte passos de mim, no meio duma moita de mussendas de folhas cor de sangue, apareceu uma visão, uma mulher, bela, radiosa, soberba.

Nunca pensei, Kammamuri, que existisse na terra criatura tão bela, nem que os deuses do céu fossem capazes de a criar.

“Tinha os olhos negros e cintilantes, os dentes alvos, a pele morena e dos seus cabelos castanho-escuros, a ondular sobre os ombros, vinha um perfume doce que inebriava os sentidos.”

“Ela olhou para mim, soltou um gemido longo e pungente e, depois...

desapareceu da minha vista. Sentime incapaz de me mover, fiquei ali, com os braços estendidos para a frente, extasiado. Quando voltei a mim e me pus a procurá-la, já a noite tinha descido sobre a selva e não vi nem ouvi mais nada.”

“Quem era aquela aparição? Uma mulher ou um espírito celeste? Ainda hoje o ignoro.”

Tremal-Naik calou-se. Kammamuri notou que ele tremia como se tivesse febre.

— Aquela visão foi fatal para mim—recomeçou Tremal-Naik, com raiva.—a partir daquela tarde, deu-se em mim uma estranha mudança; pareceu-me ter-me tornado outro homem; e tive a impressão de que aqui, no meu coração, se desenvolvia uma terrível chama!

“Dir-se-ia que aquela aparição me enfeitiçou. Se estou na selva, vejo-a bailar-me diante dos olhos; se estou no rio, vejo-a nadar diante da proa do meu barco; penso, e o meu pensamento corre para ela; durmo e, em sonhos, é sempre ela que me aparece. Parece que estou louco.”

— Espantas-me, patrão—disse Kammamuri, lançando à sua volta um olhar atemorizado.—quem era essa bela criatura?

— Não sei, Kammamuri. Mas era linda, oh, sim, muito linda!- exclamou Tremal-Naik, com voz apaixonada.

— Talvez fosse um espírito?

— Talvez.

— Ou talvez uma divindade?

— Quem o pode dizer?

— E não voltaste a vê-la?

— Sim, voltei a vê-la ainda muitas e muitas vezes. Na tarde do dia seguinte, à mesma hora, sem saber como, encontrava-me na margem do regato. Quando a lua se ergueu por detrás das florestas escuras do norte, aquela soberba criatura voltou a aparecer entre as moitas das mussendas.

“Quem és?”, perguntei-lhe.

“Ada”—respondeu-me.

“E desapareceu, soltando o mesmo gemido. Pareceu-me que se enterrava pela terra adentro.”

— Ada!—exclamou Kammamuri.—que nome é esse?

— Um nome que não é indiano.

— E não acrescentou mais nenhuma palavra?

— Nenhuma.

— É estranho; eu não voltava mais àquele lugar.

— Mas eu voltei. Havia uma força irresistível e poderosa que me empurrava, contra a minha vontade, para aquele lugar; várias vezes tentei fugir e não tive forças para o fazer. Como te disse, parecia-me estar enfeitiçado.

— E que sentiste na sua presença?

— Não sei, mas o coração batia-me com toda a força.

— Nunca tinhas experimentado antes aquela sensação?

— Nunca—disse Tremal-Naik.

— E agora, continuas a ver aquela criatura?

— Não, Kammamuri. Vi-a durante dezesseis tardes seguidas; à mesma hora, aparecia-me diante dos olhos, contemplava-me, sem dizer palavra, e depois desaparecia, sem fazer barulho. Uma vez acenei-lhe, mas não se moveu; outra vez abri os lábios para falar... E ela pôs um dedo sobre a boca, convidando-me a ficar calado.

— E tu nunca a seguiste?

— Nunca, Kammamuri, porque aquela mulher metia-me medo. Faz agora quinze dias, apareceu-me, toda vestida de seda vermelha, e olhou-me mais prolongadamente do que de costume. Na tarde seguinte, em vão esperei por ela, em vão a chamei: não voltei a vê-la.

— É uma aventura estranha—murmurou Kammamuri.

— É mas é terrível—disse Tremal-Naik, com voz surda.—deixei de me sentir bem, já não sou o homem que era; sinto-me arder em febre e tenho uma vontade louca de voltar a contemplar aquela visão, que me enfeitiçou!

— Quer dizer que tu amas aquela visão.

— Amo-a! Não sei o que isso quer dizer.

Naquele momento, a grande distância, para o lado dos pântanos imensos do sul, ecoaram algumas notas agudíssimas. O marata levantou-se dum salto e fez-se cor da cinza.

— O ramsinga!—exclamou ele, aterrorizado.

— Que é que te atormenta?—perguntou Tremal-Naik.

— Não ouves o ramsinga?

— E então? Que é que isso significa?

— É o sinal duma desgraça, patrão.

— Parvoíces, Kammamuri.

— Nunca ouvi tocar o ramsinga na selva, a não ser na noite em que foi assassinado o pobre Tamul.

Àquela recordação, uma ruga profunda sulcou a fronte do caçador de serpentes.

— Não tenhas medo—disse ele, esforçando-se por aparentar calma.—todos os indianos sabem tocar o ramsinga e tu sabes que, às vezes, há caçadores que ousam pôr os pés na terra dos tigres e das serpentes.

Mal tinha acabado de falar quando se ouviu o uivo lamentoso de um cão e, pouco depois, um potente rosnar, que podia transformar-se em verdadeiro rugido.

Kammamuri tremeu da cabeça aos pés.

— Ah! Patrão—exclamou.—até o cão e o tigre assinalam uma desgraça.

— Darma! Punthy!—gritou Tremal-Naik.

Um soberbo tigre real, de alta estatura e formas vigorosas, com a pele alaranjada, sulcada de riscas negras, saiu da cabana e fixou o patrão com dois olhos que faiscavam. Atrás dele, compareceu, pouco depois, um canzarrão negro, de cauda longa e orelhas aguçadas, trazendo ao pescoço uma grossa coleira eriçada de pontas.

— Darma! Punthy!—repetiu Tremal-Naik.

O tigre recolheu-se sobre si próprio, emitiu um rugido surdo e, com um salto de quatro metros e meio, veio cair aos pés do homem.

— Que tens, Darma?—perguntou ele, passando as mãos sobre o dorso robusto da fera.—estás inquieto.

O cão, em vez de ir ter com o dono, plantou-se sobre as quatro patas, esticou a cabeça para sul, farejou por algum tempo o ar e ladrou lamentosamente, três vezes.

— Terá acontecido alguma desgraça a Hurti e Aghur?—murmurou, inquieto, o caçador de serpentes.

— É o que receio, patrão—disse Kammamuri, lançando à selva olhares espavoridos.—a esta hora já cá deveriam estar, e não dão sinal de vida.

— Não ouviste nenhuma detonação durante o dia?

— Sim, ouvi uma por volta do meio-dia, e depois mais nada.

— Donde vinha?

— Do sul, patrão.

— Viste alguma pessoa suspeita na selva?

— Não, mas Hurti disseme que tinha visto uma tarde umas sombras nas praias da ilha Rajmangal e Aghur disse que tinha ouvido rumores estranhos que vinham do baniano sagrado.

— Ah! Do baniano!—exclamou Tremal-Naik—também ouviste alguma coisa?

— Talvez. Que fazemos, patrão?

— Esperemos.

— Mas podem...

— Cala-te—disse Tremal-Naik, apertando-lhe o braço com uma força tal que quase lhe paralisava o sangue.

— Que ouviste?—murmurou o marata, batendo os dentes.

— Olha lá em baixo, não te parece que os bambus da selva estão a mexer?

— É verdade, patrão.

Punthy fez ouvir pela terceira vez o seu uivo lamentoso, seguido pelas notas agudas do misterioso ramsinga. Tremal-Naik tirou do cinto de pele de tigre uma comprida e rica pistola incrustada de prata e carregou-a.

Naquele instante, um indiano de alta estatura, seminu, armado apenas com um machado, lançou-se para fora dos bambus, correndo a toda a brida em direcção à cabana.

— Aghur!—exclamou ao mesmo tempo Tremal-Naik e o marata.

Punthy lançou-se contra ele, uivando lugubremente.

— Patrão!... Patrão!—murmurou o indiano.

Chegou como um relâmpago diante da cabana, cambaleou, como se um súbito mal-estar o tivesse acometido, arregalou os olhos, soltou um grito sufocado e abateu-se sobre as ervas como uma árvore arrancada pelo vento.

Tremal-Naik precipitou-se para ele.