Serão os indianos, os habitantes destes lugares fúnebres?”
Olhou à sua volta, com supersticioso terror, mas estava efectivamente sozinho; olhou para a abertura do pagode e ela estava efectivamente livre.
“Algo está para acontecer. Sinto-o”, disse, em voz baixa, “Mas mostrar-lhes-ei quem é Tremal-Naik quando se bate.”
Examinou a carga das pistolas e da carabina, receando talvez que mão misteriosa a tivesse tirado; examinou mesmo a lâmina do seu fiel punhal, mais de cem vezes tingida no sangue das serpentes e dos tigres, e acocorou-se atrás da monstruosa estátua, encolhendo-se o mais que lhe era possível.
O dia passou com uma lentidão espantosa para o indiano, condenado a uma imobilidade quase absoluta e a um jejum forçado.
Pouco a pouco, as sombras da noite invadiram os recantos mais escuros do pagode e depois ergueram-se gradualmente para a cúpula: às nove, a escuridão era tão completa que não se via um palmo à frente do nariz, embora a lua brilhasse no céu, reflectindo-se na grande bola de bronze dourado e na serpente com cabeça de mulher.
O ramsinga não voltara a fazer ouvir as suas notas fúnebres e o murmúrio cessara há muito. Um silêncio misterioso reinava por toda a parte.
No entanto, Tremal-Naik não ousava mexer-se. O único movimento que fazia era o de apoiar a orelha nas frias pedras do pagode, para escutar com profunda atenção.
Uma voz secreta dizia-lhe que vigiasse e que desconfiasse, e bem depressa se apercebeu de que aquela voz não mentia, pois, por volta das onze, quando as trevas eram mais densas, um rumor estranho, ainda indefinível, chegou até ele.
Era como se alguma coisa descesse lá de cima, seguindo a corda que sustentava a lâmpada. Embora fitasse com toda a atenção, Tremal-Naik não foi, no entanto, capaz de distinguir o que fosse. Por precaução, empunhou as pistolas e levantou-se silenciosamente, pondo-se de joelhos.
“Que será?”, perguntou de si para si. “Ada, não, pois a meia-noite ainda vem longe. Serão aqueles homens terríveis?”
Uma onda de ira subiu-lhe ao rosto.
“Desgraçado de quem entrar!”
Um barulho metálico ressoou nas trevas. Era a lâmpada que se agitava, sacudida, sem dúvida, por aquele que descia lá do alto.
Tremal-Naik não se deteve mais.
— Quem vem lá?—gritou ele.
Ninguém respondeu à pergunta e o barulho cessou.
“Ter-me-ei enganado?”, perguntou de si para consigo.
Levantou-se e olhou para cima. Lá no alto, sobre a cúpula, a lua continuava a reflectir-se na bola dourada e via-se uma parte da corda vegetal que sustentava a lâmpada, mas nenhum ser humano pendia dela.
“É estranho”, disse Tremal-Naik, que ficara inquieto.
Voltou a aninhar-se, continuando a olhar à sua volta.
Passaram outros vinte minutos, e a lâmpada voltou a retinir.
— Quem está aí?—repetiu ele, com voz estridente.—se é alguém, avance, Tremal-Naik espera-o.
Novo silêncio. Então agarrou-se aos pés da gigantesca estátua, subiu a braços, elevou-se até pôr os pés em cima da cabeça e agarrou a lâmpada, sacudindo-a furiosamente.
Uma gargalhada sonora ressoou pelo pagode.
“Ah!”, exclamou Tremal-Naik, que sentia a cólera invadi-lo. “Há alguém a rir-se lá em cima. Espera!”
Reuniu as suas hercúleas forças, e depois, com um puxão irresistível, partiu a corda. A lâmpada caiu no chão com um barulho indescritível, que os ecos do templo repetiram várias vezes.
Uma segunda gargalhada se fez ouvir. Tremal-Naik saltou da estátua abaixo escondendo-se atrás dela.
Era tempo. Uma porta se abriu e um indiano, alto e magro, ricamente vestido, com um punhal numa das mãos e uma tocha resinosa na outra, apareceu.
Aquele homem era o cruel Suyodhana: o seu rosto bronzeado irradiava uma alegria satânica e nos olhos brilhava-lhe um lampejo sinistro.
Deteve-se um momento a contemplar a monstruosa divindade, atrás da qual estava Tremal-Naik, com o punhal entre os dentes e as pistolas na mão, e depois avançou alguns passos. Atrás dele avançaram vinte e quatro homens, que se colocaram doze à direita e doze à esquerda. Estavam todos armados de punhal e do cordão de seda com a bola de chumbo.
— Meus filhos—disse Suyodhana, com uma entoação que fazia tremer—,é meia-noite!
Os indianos soltaram as cordas, brandiram os punhais e espetaram as tochas em buracos feitos na parede.
— Estamos prontos para a vingança!—responderam em coro.
— Um ímpio—prosseguiu Suyodhana—profanou o pagode da nossa deusa.
Que merece esse homem?
— A morte—responderam os indianos.
— Um ímpio ousou falar de amor à “virgem do pagode”. Que merece esse homem?
— A morte—responderam os indianos.
— Tremal-Naik!—gritou Suyodhana, com terrível tom de voz.—mostra-te!
Respondeu-lhe uma gargalhada, e, depois, o caçador de serpentes, que tinha ouvido tudo, apareceu, atirando-se com um salto para a frente da monstruosa divindade.
Já não era o mesmo homem; parecia um tigre que viesse da selva. Um sorriso feroz aflorava aos seus lábios, o rosto era feroz, alterado por uma cólera furiosa, e os olhos desferiam sinistros lampejos.
O filho selvagem da floresta despertava, pronto a rugir e a morder.
— Ah! Ah!—exclamou ele, rindo.—sois vós que quereis matar Tremal-Naik?
Bem se vê que ainda não conheceis o caçador de serpentes. Vede, assassinos, quanto vos desprezo.
Levantou para o ar as duas pistolas e descarregou-as, atirando para longe de si as armas. Descarregou depois a carabina e empunhou-a pelo cano para se servir dela como dum bastão.
— Agora—disse ele—,quem se sentir com coragem para enfrentar Tremal-Naik avance. Bato-me pela mulher que vós, malditos, condenastes!
Deu um salto para trás e pôs-se à defesa, lançando o seu grito de guerra.
— Avancem! Avancem!—gritou.—eu bato-me pela “virgem do pagode”!
Um indiano, sem dúvida o mais fanático, foi-se contra ele, fazendo assobiar o laço no ar. Ou porque tivesse tomado pouco balanço, ou porque escorregasse, veio cair quase aos pés de Tremal-Naik.
O terrível bastão levantou-se e desceu com fulminante rapidez, ferindo o crânio do indiano. A morte foi instantânea.
— Avancem! Avancem!—repetiu Tremal-Naik.—bato-me pela minha Ada!
Os vinte e três indianos atiraram-se como um só homem sobre o caçador de serpentes, que fazia rodar, como um demente, a carabina.
Um outro indiano caiu, mas a carabina não agüentou aquele segundo golpe e partiu-se nas mãos daquele que a utilizava.
— A morte! A morte!—gritaram os indianos, a espumar de raiva. Um laço caiu sobre Tremal-Naik, apertando-lhe o pescoço, mas ele tirou-o das mãos ao estrangulador, depois empunhou o punhal e atirou-se contra a estátua de bronze, subindo-lhe para cima da cabeça.
— Ao largo! Ao largo!—gritou ele, lançando olhares ferozes à sua volta.
Recolheu-se sobre si próprio, como um tigre, e, saltando por cima das cabeças dos indianos, procurou dirigir-se para a porta, mas não teve tempo para tanto. Duas cordas prenderam-lhe os braços, ferindo-o dolorosamente com as bolas de chumbo e deitando-o por terra.
Soltou um grito terrível. Num abrir e fechar de olhos, os indianos caíram-lhe em cima, qual matilha de cães à volta do javali, e, apesar da sua forte resistência, foi solidamente ligado e reduzido à impotência.
— Socorro! Socorro!—murmurou ele.
— A morte! A morte!—gritaram os indianos.
Com um esforço hercúleo, quebrou duas cordas, mas foi tudo o que conseguiu fazer. Novos laços o ligaram e com tanta força que a carne se fez negra.
Suyodhana, que assistira, impassível, àquela luta desesperada de um homem contra vinte e dois, avizinhou-se e contemplou-o, por instantes, com satânica alegria.
Tremal-Naik, nada podendo fazer, cuspiu-lhe em cima.
— Ímpio!—exclamou o filho das sagradas águas do Ganges.
Empunhou solidamente o seu punhal e levantou-o sobre o prisioneiro, que o olhava desdenhosamente.
— Meus filhos—disse o indiano—,que pena merece este homem?
— A morte!—responderam os indianos.
— Seja a morte.
Tremal-Naik soltou um último grito.
— Ada! Pobre Ada!
A lâmina do vingador, que lhe penetrava no peito, apagou-lhe a voz. Abriu muito os olhos, fechou-os, um espasmo violento agitou os seus membros, que se tornaram rígidos.
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