Tu mandaste-me perfumes e eu derramei-os aos pés da tua divindade.
— Diz: “da nossa divindade”.
— Sim, da nossa divindade—disse a menina, com os dentes cerrados.
— Que viste no pagode?
— Nada.
— “Virgem do pagode”, tu corres um grande perigo—repetiu o indiano, com voz ainda mais sombria.—eu descobri tudo!
Ada dera um salto para trás, soltando um grito de horror.
— Sim—prosseguiu o indiano com uma contida raiva—,descobri tudo! O teu coração, condenado a nunca bater sobre esta terra, palpitou de amor por um homem que tu viste na floresta negra. Esse homem desembarcou a noite passada nos nossos domínios e, depois de ter levantado a mão para nós, de ter cometido um horrendo delito, desapareceu, mas eu encontrei-o. Esse homem entrou no pagode.
— Mentes! Mentes!—exclamou a desventurada jovem, espavorida.
— Mas esse homem não sairá vivo daqui—recomeçou o indiano, com feroz alegria.—louco, ele queria desafiar-nos, a nós, os poderosos, a nós, que fazemos tremer a Inglaterra. A serpente entrou na cova do leão e o leão dará cabo dela.
— Não faças isso!
O indiano deu uma gargalhada trocista.
— Quem é que se opõe aos desejos da nossa divindade?
— Eu!
— Tu?
— Sim, eu, miserável. Olha!
Com um movimento rápido, Ada deitara por terra o sari, armara-se com um punhal de lâmina flamejante molhada num veneno sutil e apontara-o à sua própria garganta. O indiano, de bronzeado que era, fez-se escuro.
— Que queres fazer?—disse ele, assustado.
— Suyodhana—disse a jovem, com um tom de voz que não deixava dúvidas—,se tocas naquele homem, num cabelo que seja, juro-te que a tua deusa perderá a sua “virgem”.
— Deita fora esse punhal!
— Suyodhana, jura pela cabeça da tua deusa que Tremal-Naik sairá vivo daqui.
— É impossível. Esse homem está condenado: o seu sangue já está destinado à deusa.
— Jura-o!—disse Ada, com voz ameaçadora.
Suyodhana recolheu-se sobre si próprio, como para se lançar sobre ela, mas o medo de chegar tarde de mais deteve-o.
— Escuta, “virgem do pagode”—disse ele, aparentando calma—esse homem será salvo, mas tu deves jurar que nunca mais o amarás!
Ada soltou um gemido lancinante e contorceu desesperadamente as mãos.
— Tu matas-me!—exclamou ela, soluçando.
— És a eleita da nossa deusa.
— Monstruosas criaturas, porque despedaçais tão depressa uma felicidade que acaba de nascer? Porque extinguis tão depressa o raio de sol que inundava este pobre coração fechado a toda a alegria? Não, não é possível que eu quebre esta paixão, que é já por demais grande.
— Jura-o, e aquele homem está salvo.
— És assim inexorável? Não há então qualquer esperança? Mas eu renego a tua assustadora deusa, que me horroriza, que amaldiçoei desde o primeiro dia em que a fatalidade me lançou nos vossos braços.
— Somos inexoráveis—retorquiu o indiano.
— Mas, então, tu nunca amaste?—perguntou ela, chorando de raiva.—não sabes o que é uma paixão desfeita?
— Não sei o que seja o amor—disse o inflexível indiano.—jura, “virgem do pagode”, porque, se não, eu mato aquele homem.
— Ah, malditos!
— Jura!
— Pois bem...—exclamou a infeliz, com voz apagada.—eu... eu juro... que nunca mais... amarei... aquele homem.
Soltou um grito desesperado, dilacerante, levou as mãos ao coração e caiu sem sentidos na esteira. O indiano soltou uma gargalhada.
— Tu juraste que o não amarás—disse ele, com satánica alegria, recolhendo o punhal que a jovem deixara cair.—mas eu não jurei que aquele homem sairá vivo daqui. Sorri, excelsa divindade, e alegra-te: esta noite oferecer-te-emos uma nova vítima.
Levou aos lábios um apito de ouro e deu um agudo assobio.
Um indiano, com o laço atado à volta da cintura e o punhal na mão, entrou, ajoelhando-se diante de Suyodhana.
— Filho das sagradas águas do Ganges, eis-me aqui—disse ele.
— Karna—disse Suyodhana—,leva a “virgem do pagode” e vigia-a.
— Conta comigo, filho das sagradas águas do Ganges.
— Essa “virgem” tentará talvez suicidar-se, mas tu impedi-la-ás de o fazer, pois a nossa divindade, por ora, não a tem senão a ela. Se ela morrer, também tu morrerás.
— Impedi-la-ei.
— Depois, reunirás cinqüenta dos mais fanáticos e dispô-los-ás à volta do pagode. O homem não deve escapar-nos.
— Está um homem no pagode?
— Sim: Tremal-Naik, o caçador de serpentes da floresta negra. Vai, e à meia-noite está aqui.
O indiano saiu, levando a pobre Ada nos braços. Suyodhana, ou, melhor, o filho das sagradas águas do Ganges, esperou que o rumor dos passos tivesse terminado, depois ajoelhou diante da pia de mármore onde nadava o peixinho dourado.
“Meu pai”, disse ele.
O peixinho, que nadava no fundo da pia, àquela voz, veio à tona de água.
“Meu pai”, prosseguiu o indiano, “um homem, um miserável, levantou os olhos para a ‘virgem do pagode’. Esse homem está nas nossas mãos; queres que viva ou que morra?”
O peixinho mergulhou, nadando vivamente. Suyodhana levantou-se num salto: um sinistro lampejo brilhou nos seus olhos.
“A deusa condenou-o”, disse ele, com voz sombria. “Esse homem morrerá!”
Tremal-Naik, que ficara só, deixara-se cair aos pés da estátua, comprimindo o coração, que lhe batia furiosamente, como se quisesse saltar-lhe do peito. Nunca uma emoção assim lhe sacudira as entranhas; nunca experimentara tanta alegria, na sua vida selvagem e solitária, entre as canas e os tigres.
“Bela! Bela!”, exclamava ele, sem se lembrar de que se encontrava no pagode maldito e que talvez cem ouvidos estivessem a ouvi-lo. “Está bem! Serás minha esposa, sim, errante flor da selva, nem que eu tivesse de por esta ilha a ferro e fogo; nem que eu tivesse de lutar sozinho contra os monstros que te condenaram. Sairei daqui, encontrarei os meus valentes companheiros e então hei-de raptar-te, salvar-te-ei. Eles são fortes, foste tu quem o disse, são terríveis, mas serei mais forte e mais terrível e far-lhes-ei pagar caro as lágrimas que tu, infeliz, derramaste diante de mim. O amor me dará a força para levar a cabo essa empresa.”
Levantara-se e pusera-se a passear, agitadíssimo, com os punhos convulsamente cerrados e os traços do rosto alterados por uma raiva mal contida.
“Pobre Ada!”, prosseguiu, com profunda ternura. “Mas que destino pesa sobre ti? Porque não podes amar-me? A morte despedaçará a tua vida, disseste, no dia em que te tornasses minha esposa: mas eu detê-la-ei. A essa morte, eu a despedaçarei com as minhas próprias mãos. Oh! Desvendarei, sim, hei-de desvendar este tremendo mistério e, então, tremam os miseráveis que te condenaram!”
Deteve-se, ao ouvir as notas agudas do ramsinga.
“Maldito instrumento!”, exclamou. “Continua a tocar!”
Estremeceu, ao pensamento que lhe atravessou a mente.
“Esta trombeta anuncia uma desgraça”, murmurou. “Ter-me-ão descoberto, ou terão matado Kammamuri?”
Susteve a respiração e apurou os ouvidos, distinguindo então um murmúrio de vozes que pareciam vir de fora.
“Que quer isto dizer? Há gente lá fora.
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