“Que perigo nos ameaça ainda?”

Carregou a carabina, rastejou, sem fazer barulho, em direcção às árvores e olhou.

A trinta passos dele movia-se um grande animal, com um comprimento não inferior a três metros, de formas pesadas, maciças. Tinha a pele cheia de protuberâncias, a cabeça grande e um pouco triangular, as orelhas grandes e sobre a massa óssea das narinas um chifre agudo e muito comprido.

Kammamuri reconheceu de imediato com que espécie de inimigo tinha de se haver, e sentiu o coração apertar-se de terror.

“Um rinoceronte!”, exclamou ele, com um fio de voz. “Estamos perdidos!”

Nem sequer levantou a carabina, sabendo muito bem que a bala se teria esmagado contra aquela pele grossíssima, mais resistente do que uma couraça de aço. Podia, é claro, ferir o monstro num olho, o seu único ponto vulnerável, mas o medo de falhar o tiro e de ser esventrado pelo terrível chifre ou esmagado debaixo das monstruosas patas sugeriu-lhe a idéia de ficar quieto, esperando não ser descoberto.

O rinoceronte parecia possuído de viva irritação, o que acontece muitas vezes a este animal intratável, mal feito, brutal e pobre de inteligência. Atirava-se, como se tivesse enlouquecido, com uma agilidade verdadeiramente surpreendente num animal da sua estatura, e divertia-se a partir, esmigalhar e espalhar os bambus, fazendo amplas brechas na selva.

De quando em quando, detinha-se, respirando ruidosamente, rebolava-se na terra como um chacal, agitando loucamente as pernas mal feitas e metendo o chifre no meio das ervas, para depois voltar a levantar-se e recomeçar os seus assaltos contra os bambus.

Kammamuri nem sequer respirava, para não atrair a atenção do bruto; suava como se estivesse em cima duma caldeira em ebulição e apertava convulsivamente a carabina, que se tornara inútil como um bastão de ferro. Tinha medo de que o animal se atirasse às árvores e se aproximasse do pequeno lago, descobrindo assim Tremal-Naik.

Ficou ali por algum tempo e depois regressou ao lugar onde jazia o patrão. O seu primeiro cuidado foi o de arrancar toda a erva que conseguiu, para esconder totalmente o ferido; depois escapuliu-se para junto dum baniano bastante grosso, levando consigo as armas.

“Mais não posso fazer”, disse. “De qualquer modo, receberei a fera com uma descarga geral das minhas armas.”

O rinoceronte continuava aos saltos junto da selva. Ouvia-se o terreno estremecer debaixo do seu peso, os bambus partir-se, crepitando, e a formidável respiração da fera semelhante ao som duma trombeta rouca.

De súbito, Kammamuri ouviu o rugido do tigre. Correu rapidamente para o lago, olhando à volta, assustado.

Em cima da árvore que acabava de abandonar, descobriu o tigre, agarrado a um dos ramos; os seus olhos cintilavam como os de um gato e as garras arrancavam a casca da árvore.

Apontou rapidamente o fuzil em direcção à fera, a qual, assustada, saltou para alcançar a selva, mas encontrou-se diante do rinoceronte.

Os dois formidáveis animais olharam um para o outro durante alguns instantes. O tigre, sabendo talvez que nada tinha a ganhar numa luta com o brutal colosso, procurou fugir, mas não teve tempo para tanto.

O rinoceronte fizera ouvir o seu grito. Baixou a cabeça enorme, mostrando o agudo chifre, e atirou-se furiosamente sobre a fera, abanando raivosamente a sua curta cauda.

O choque foi terrível. O tigre dera um enorme salto, caindo sobre a garupa do colosso, o qual, tendo dado trinta ou quarenta passos, se atirou por terra, obrigando o tigre a largá-lo.

“Bravo, rinoceronte!”, murmurou Kammamuri.

Os dois inimigos tinham-se levantado com fulminante rapidez, precipitando-se um contra o outro. O segundo assalto não foi feliz para o tigre. O

chifre do rinoceronte rompeu-lhe o peito, atirando com ele pelos ares, a uma distância de mais de vinte metros. Caiu, procurou levantar-se, gemendo de dor e de raiva, e de novo voou, ainda mais alto, perdendo torrentes de sangue.

O rinoceronte nem sequer esperou que voltasse a cair. Com um terceiro golpe da sua terrível arma, abriu-lhe a barriga e, depois, atirando-o ao chão, esmagou-o com as patas, reduzindo-o a um monte de carnes sanguinolentas e ossos partidos.

Tudo isto sucedera em poucos segundos. O colosso, satisfeito, emitiu duas ou três vezes o seu assobio surdo, depois reentrou na selva, a devastar os bambus, sem, no entanto, se afastar do lago.

A sua retirada chegava em boa altura, pois Tremal-Naik, em delírio e com uma febre violentíssima acordara, chamando Kammamuri.

Isso tornava a situação dos dois indianos extremamente perigosa, pois o intratável animal podia ouvir as suas vozes e aparecer de repente entre as árvores.

O marata bem sabia que não se devia iludir sobre as probabilidades de salvar a vida, nem sequer com a fuga, pois todas as espécies de rinocerontes superam, em corrida, o homem mais veloz.

Apressou-se a ir para junto do patrão e a libertá-lo das ervas que o cobriam.

— Silêncio—disse ele, pondo-lhe a mão sobre os lábios.—se nos ouve, estamos irremediavelmente perdidos.

Mas Tremal-Naik, em delírio, agitava loucamente os braços e dos lábios saíam-lhe palavras sem sentido:—“Ada”—gritava ele, abrindo assustadoramente os olhos. “Onde estás tu, ‘virgem do pagode’?... Ah! Ah! Já me lembro... Sim. Meia-noite! Meia-noite!... E eles vieram todos armados, muitos contra um. Mas eu não tenho medo, não. Eu não tremo, sabes, Ada, sou o caçador de serpentes... forte, muito forte! Vi aquele homem, aquele que te condenou. sabes? Era feio e queria estrangular-me.”

“Porque é que aqueles homens também têm a serpente no peito? Quantas serpentes, tantas cabeças de mulher. Mas não me metem medo. O quê? Eu ter medo deles? Eu, Tremal-Naik?... Ah!...