Ah!...”
Tremal-Naik deu uma gargalhada que fez tremer o marata até ao fundo da alma.
— Patrão, está calado!—suplicou Kammamuri, que ouvia o maldito animal saltar furiosamente no limiar da selva.
O delirante olhou-o com os olhos semicerrados e prosseguiu, em voz mais alta: “Era de noite, uma noite muito escura, eu descia lá do alto e abaixo de mim vagueava a visão. Ouvi o perfume cair sobre as pedras. Por que, cruel, adorar aquela divindade? Então não me amas?... Tu sorris, mas eu tremo. Sabes como te ama o caçador de serpentes. Será que tenho um rival? Ai dele!... olha os malditos que se aproximam... riem, dão gargalhadas e ameaçam-me... fora daqui, assassinos, fora, fora!... Ainda têm os laços, lançam-nos... esperai aí, que eu já chego...
vingá-la-ei, assassinos, eis-me aqui... Kammamuri! Kammamuri! estão a estrangular-me!”
O delirante sentou-se, com os olhos fora das órbitas e espuma nos lábios, e, estendendo o punho fechado para o marata, gritou:—És tu que me queres estrangular? Kammamuri, dá-me as pistolas que eu mato-o.
— Patrão, patrão—balbuciou o marata.
— Ah!, tu... não sabes quem são? Kammamuri, eles estrangulam-me!
Socorro!...
O marata sufocou-lhe os gritos, pondo-lhe rapidamente uma das mãos sobre a boca e deitando-o por terra. O ferido debatia-se furiosamente, rugindo como uma fera.
— Socorro!—tornou a gritar.
Vindo do lado das árvores, ouviu-se um poderoso rugido. O marata, a tremer de medo, viu o focinho triangular do rinoceronte aparecer entre as ramagens. Julgou-se perdido.
— Grande Xiva!—exclamou, recolhendo furiosamente a carabina.
O rinoceronte olhou o grupo, com os seus olhinhos pequenos e brilhantes, mas mais com surpresa do que com cólera.
Não havia um instante a perder. A surpresa não devia durar muito para aquele brutal colosso, que se irrita com tanta facilidade.
O marata, a quem a iminência do perigo tornava ousado, apontou friamente a carabina, visou um dos olhos e deixou partir a descarga, mas a bala, com má direcção, esmagou-se na testa do rinoceronte, que estendeu horizontalmente o chifre, preparando-se para o assalto.
A perda dos dois indianos era agora quase certa. Dentro de poucos minutos teriam a mesma sorte reservada ao tigre.
Felizmente, Kammamuri não perdera o sangue-frio. Vendo o animal ainda de pé, deixou cair a arma, agora inútil, precipitou-se sobre Termal-Naik, levantou-o nos braços, correu para o lago e saltou para a água, afundando-se até aos ombros.
O rinoceronte carregava agora com fúria irresistível. Em quatro saltos venceu a distância e caiu pesadamente na água, levantando uma onda de lama e de espuma. Aterrado, Kammamuri procurou fugir, mas não conseguiu. As suas pernas tinham-se afundado na areia, de tal modo que qualquer esforço resultava inútil. O
desgraçado, meio asfixiado, a tremer, pálido, soltou um grito desesperado.
— Socorro! Que eu morro!
Ouvindo atrás de si assobios surdos, voltou-se e viu o rinoceronte a debater-se furiosamente, atirando à esquerda e à direita tremendas cornadas; o colosso, arrastado pelo seu enorme peso, enterrara-se até à barriga e continuava a afundar-se nas areias movediças.
— Socorro!...—repetiu o marata, esforçando-se por manter o patrão fora da água.
Um latido longínquo respondeu ao seu desesperado chamamento; Kammamuri estremeceu; aquele latido já ele o tinha ouvido, não uma, mas muitas vezes. Uma esperança louca iluminou-lhe a mente.
— Punthy!—gritou.
Um cão negro, vigoroso, grande, saiu da massa espessa dos bambus e correu para o lago, ladrando furiosamente. Aquele cão, que em tão boa hora chegava, era mesmo o fiel Punthy, que se atirou ao rinoceronte, tentando agarrar-lhe uma orelha.
Quase no mesmo instante, ouviu-se a voz de Aghur.
— Aguenta-te, Kammamuri!—gritava o valente rapaz.—estou aqui.
Com um salto, o bengalês atravessou um denso matagal, desapareceu entre os bambus e reapareceu na margem do lago. Carregou rapidamente o fuzil e disparou contra o rinoceronte, o qual, ferido no cérebro, caiu sobre um dos lados, ficando com mais de metade do corpo encoberto pela lama.
— Não te mexas, Kammamuri—prosseguiu o hábil caçador.—agora vamos fazer o salvamento, mas... Que tem o patrão? Está ferido?
— Cala-te e desembaraça-te, Aghur—disse o marata, que ainda tremia—há inimigos na selva.
O bengalês desatou apressadamente a corda que lhe cingia o dubgah e atirou uma ponta a Kammamuri, que a agarrou solidamente.
— Agüenta—disse Aghur.
Reuniu todas as suas forças e começou a puxar. Kammamuri sentiu que era arrancado daquelas tenazes de areia e arrastado para a margem, para a qual trepou apressadamente.
— Então?—perguntou Aghur, ansiosamente, olhando, aterrado, para o patrão.
— que aconteceu?
— Apunhalaram-no.
— Ah! E quem foi?
— Os mesmos que assassinaram Hurti.
— Quando? Como?
— Dir-te-ei mais tarde. Despacha-te, constrói uma maca e partamos; somos seguidos.
Aghur não quis saber mais nada. Tirou o cutelo, cortou seis ou sete ramos, ligou-os com sólidas cordas e sobre aquela tosca maca amontoou alguns braçados de folhas.
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