Uma exclamação de surpresa escapou-se-lhe da boca.

O indiano parecia moribundo. Tinha nos lábios uma espuma sanguinolenta, o rosto estava rasgado e cheio de sangue, os olhos revirados e enormemente dilatados; ofegava, soltando suspiros roucos.

— Aghur!—exclamou Tremal-Naik.—que te aconteceu? Onde está Hurti?

Ao ouvir aquele nome, o rosto de Aghur contraiu-se horrivelmente e com as unhas remexeu raivosamente a terra.

— Patrão... Pa... trão!—balbuciou ele, com profundo terror.—Estou su...

focado. Corri... Ah! Patrão!

— Estará envenenado?—murmurou Kammamuri.

— Não—disse Tremal-Naik.—o pobre diabo correu como um cavalo e está sufocado; dentro de alguns minutos estará refeito.

De facto, Aghur começava a voltar a si e a respirar livremente.

— Fala, Aghur—disse Tremal-Naik, ao fim de alguns minutos.—porque voltaste sozinho? Por que tanto terror? Que aconteceu ao teu companheiro?

— Ah! Patrão—balbuciou o indiano, estremecendo—,que desgraça!

— O ramsinga tinha-a anunciado—murmurou Kammamuri, suspirando.

— Continua, Aghur—insistiu o caçador de serpentes.

— Se o tivessem visto, ao desgraçado... Estava para ali, estendido por terra, inteiriçado, com os olhos a sair das órbitas.

— Quem?... Quem?

— Hurti!

— Hurti morreu?—exclamou Tremal-Naik.

— Sim, assassinaram-no junto do baniano sagrado.

— Mas quem o assassinou? Dize-mo, para que eu vá vingá-lo.

— Não sei, patrão.

— Conta tudo.

— Tínhamos partido para caçar um grande tigre. A seis milhas daqui, descobrimos a fera, que, ferida pela carabina de Hurti, fugiu para sul. Seguimos a sua pista durante quatro horas e voltámos a encontrá-la junto da margem, em frente da ilha Rajmangal, mas não conseguimos matá-la, pois, apenas deu por nós, lançou-se à água, indo aproar junto do grande baniano.

— Bem, e depois?

— Eu queria voltar para trás, mas Hurti recusava-se, dizendo que o tigre estava ferido e era, portanto, uma presa fácil. Atravessámos o rio a nado e chegámos à ilha Rajmangal, onde nos separámos, para explorar os arredores.

O indiano deteve-se, batendo os dentes, aterrorizado e branco como a cal.

— Descia a noite—recomeçou ele, com voz sombria.—sob os bosques começava a estar escuro e reinava um silêncio fúnebre que metia medo. De repente, ribombou uma nota aguda, a do ramsinga. Olhei à minha volta e dei com os olhos nos de uma sombra que estava de pé, a vinte passos de mim, semi-escondida num tufo de verdura.

— Uma sombra!—exclamou Tremal-Naik—disseste uma sombra?

— Sim, patrão, uma sombra.

— Quem era? Diz-mo, Aghur, diz-mo!

— Pareceu-me uma mulher.

— Uma mulher!

— Sim, estou certo de que era uma mulher.

— Bela?

— Estava escuro de mais para que eu pudesse vê-la distintamente.

Tremal-Naik passou a mão pela testa.

— Uma sombra!—repetiu ele várias vezes.—Uma sombra lá em baixo! E se fosse a minha visão?... Continua, Aghur.

— Aquela sombra olhou-me por alguns instantes, depois estendeu um braço para mim, convidando-me a afastar-me imediatamente. Surpreendido e atemorizado, obedeci, mas ainda não andara cem passos quando um urro angustiante chegou aos meus ouvidos. Reconheci imediatamente aquele grito: era o grito de Hurti!

— E a sombra?—perguntou Tremal-Naik possuído por extrema agitação.

— Nem sequer me voltei para trás. Para ver se lá tinha ficado ou se tinha desaparecido. Lancei-me a correr através da selva, com a carabina na mão, e cheguei até junto do grande baniano, onde, deitado de costas, vi o pobre Hurti.

Chamei-o, não me respondeu; toquei-lhe estava ainda quente, mas o coração deixara de bater!

— Tens a certeza?

— Absoluta, patrão.

— Onde o tinham ferido?

— Não lhe vi no corpo ferida alguma.

— É impossível!

— Juro!

— E não viste ninguém?

— Ninguém, nem ouvi qualquer rumor. Eu tive medo; atirei-me ao rio, atravessei-o, perdendo a carabina, e atingi a nossa selva. Julgo que fiz seis milhas sem respirar, tão grande era o meu terror. Pobre Hurti!


Capítulo 2 - A ilha misteriosa

  

  

À triste narração do indiano, seguiu-se um profundo silêncio. Tremal-Naik, que de súbito ficara nervosíssimo e com o rosto ensombrado, pusera-se a passear diante do fogo, com a cabeça curvada sobre o peito, a fronte enrugada e os braços cruzados. Kammamuri, esmagado pelo terror, meditava, enrolado sobre si próprio.

Até o cão deixara de fazer ouvir o seu uivo lamentoso e deitara-se ao lado de darma.

As notas agudas do misterioso ramsinga arrancaram o caçador de serpentes às suas meditações. Levantou a cabeça, como um cavalo de batalha que ouve o sinal para a carga, lançou um olhar profundo para a selva deserta, sobre a qual pairava agora uma densa neblina carregada de exalações venenosas, girou sobre si próprio e, aproximando-se bruscamente de Aghur, disse-lhe:—Já tinhas ouvido o ramsinga?

— Sim, patrão—respondeu o indiano—,mas só uma vez.

— Quando?

— Na noite em que Tamul desapareceu, isto é, há seis meses.

— De modo que, também tu, tal como Kammamuri, acreditas que anuncia uma desgraça?

— Sim, patrão.

— E sabes quem o toca?

— Nunca o soube.

— E pensas que o tocador tem relações com os misteriosos habitantes de Rajmangal?

— Assim o julgo.

— Quem suspeitas que sejam aqueles homens?

— Mas serão homens?

— Não creio que sejam as almas dos mortos.

— Nesse caso, serão piratas—disse Aghur.

— E que interesse podem ter em assassinar os meus homens?

— Quem sabe? Talvez seja para nos meter medo e assim nos manterem afastados.

— Onde supões que tenham as suas cabanas?

— Não sei, mas ousaria dizer que todas as noites se retirem à sombra do baniano sagrado.

— Está bem—disse Tremal-Naik.—Kammamuri, pega nos remos.

— Que queres fazer, patrão?—perguntou o marata.

— Dirigir-me ao baniano—Oh! Não faças isso, patrão!—gritaram ao mesmo tempo os dois indianos.

— Por quê?

— Matam-te, como mataram o pobre Hurti.

Tremal-Naik olhou para eles, com dois olhos que deitavam chamas.

— O caçador de serpentes nunca tremeu na sua vida e também não há-de tremer esta noite. Para a canoa, Kammamuri!—exclamou ele, com um tom de voz que não admitia réplica.

— Mas, patrão...

— Tens medo, talvez?—perguntou desdenhosamente Tremal-Naik.

— Sou marata!—disse o indiano, com orgulho.

— Então, vai. Esta noite hei-de saber quem são aqueles entes misteriosos que me declararam guerra e quem é aquela que me enfeitiçou.

Kammamuri pegou num par de remos e dirigiu-se para a margem.

Tremal-Naik entrou na cabana, tirou dum prego uma longa carabina com o cano cheio de arabescos, muniu-se dum grande frasco de pólvora e entalou no cinto um comprido cutelo.

— Aghur, tu ficas aqui—disse ele, ao sair.—se dentro de dois dias não tivermos voltado, irás ter connosco a Rajmangal, com o tigre e com Punthy.

— Ah! Patrão—Não te sentes com coragem suficiente para lá ir?

— Coragem tenho eu, patrão. O que queria dizer é que fazes mal em ir àquela ilha maldita.

— Tremal-Naik não se deixa assassinar impunemente, Aghur.

— Leva darma contigo. Pode ser-te útil.

— Denunciaria a minha presença e eu quero desembarcar sem ser visto nem ouvido. Adeus, Aghur.

Lançou a carabina a tiracolo e juntou-se a Kammamuri, que o esperava junto dum pequeno gonga, um barco tosco e pesado, cavado no tronco duma árvore.

— Partamos—disse.

Saltaram para o barco e fizeram-se ao largo, remando lentamente e em silêncio.

Uma profunda obscuridade, que a neblina pestilencial que pairava sobre os canais, as ilhas e os ilhéus tornava mais densa, cobria as Sunderbunds e a corrente do mangal.

À esquerda e à direita estendiam-se enormes massas de bambus espinhosos, formando moitas espessas, debaixo das quais se ouviam ronronar os tigres e silvar as serpentes, ervas compridas e cortantes, confusas, amalgamadas, apertadas umas contra as outras, de modo a impedir a passagem.

Mais ao longe, na linha fosca do horizonte, despontavam, aqui e além, algumas árvores, mangueiras carregadas de frutos delicados, palmeiras, latânias e coqueiros de aspecto majestoso, com longas folhas dispostas em cúpula.

Um silêncio fúnebre, misterioso, reinava por toda a parte, apenas quebrado pelo murmurar das águas amarelentas, que rasavam os ramos arqueados dos paletúvios e as folhas de lótus, e pelo rumor dos bambus sacudidos por um sopro de ar quente, sufocante, envenenado.

Tremal-Naik, estendido na popa, com o fuzil debaixo da mão, estava silencioso e mantinha abertos os olhos, fixando-os ora numa ora na outra margem, onde se ouviam sempre um rosnar rouco e silvos lamentosos. Kammamuri, pelo contrário, sentado ao meio, fazia voar o pequeno gonga, que deixava atrás de si um rasto de admirável fosforescência, que quase faria acreditar estarem aquelas águas corruptas saturadas de fósforo.